XIII. Porque Dia da Mulher é todo dia! Na linha, na veia, no âmago de nosso desamparo

Há pessoas que são pontos de reabastecimento de nós mesmas. Nelas encontramos o que mais amamos em nós, mesmo que seja ainda algo conhecido não pensado.
Elas são o lugar de carne osso e alma onde temos a segurança de recuperar a força de quem somos, ou que desejamos vir a ser. Porque nos momentos de desamparo as pessoas se perdem de si, de suas forças, daquilo que as move para a vida, para a esperança e alegria do encontro humano.
Talvez como analistas sejamos poupados em parte de atingir este estado de desamparo não apenas pela análise pessoal, que faz parte intrínseca de nossa formação, quanto pela relação singular que se estabelece numa análise. Acredito que graças ao nosso trabalho como analistas podemos ter alguma imunização frente a experiência na própria pele do desamparo, pois, ao cuidar deste estado trazido por nossos pacientes, somos movidos a encontrar formas de saída deste estado, elaborando e convocando os recursos que nos permite ancorar nossa existência, protegendo-nos de sermos lançados ao sentimento de estar à deriva.
Há mais de um ano atrás acompanhei uma paciente [que não está no presente em análise formal comigo, mas que me procura de quando em quando] durante algumas semanas.
Alguns dias antes de tombar doente pelo COVID-19, colocou-me de volta em sua vida. Colocou-me presente em sua quarentena formal: isolada de sua família em um quarto, em sua casa. Permitiu que eu experimentasse um fragmento do sofrimento que a doença comumente causa. E o fez com delicadeza, partilhando os aspectos de angústia que coadunavam com aquilo que a atormentava em seu âmago de mulher médica implicada até a alma em seu juramento. Felizmente durante todo este período ela pode permanecer respirando bem.
Já saída do quadro, estava bem. Naquele período do início da pandemia este episódio foi o primeiro que me colocou mais perto de uma das versões clínicas da doença. Naquele momento pandêmico, nela quase não havia espaço para si, quase não sendo possível permanecer longe do campo de batalha.
E dentro deste registro experienciava como privilégio suas condições de acesso a cuidados a que ela enquanto paciente podia e devia receber; era nisso que ela pensava nos momentos de sua maior fragilidade. E prometia a si mesma que logo retornaria às trincheiras, onde, acrescento eu, sua maestria certamente continuaria a salvar muitas vidas com o mínimo de sofrimento.
Sua descrição do ato de entubar uma paciente, incluindo a descrição do paramento protetivo que precisava portar, foi épica. Sem espaço para si, fruto em parte pela sua capacidade hipersensível de sentir a dor do mundo, precisava seguir sua saga de herói.
De vez em quando me toma por testemunha. Inscreve em mim os relatos de suas façanhas. Sabe que sou capaz de apreciá-las; mas não sei se voltará a me deixar tratá-la… Talvez com medo de que a análise possa fazer com que ela se volte um pouco mais para si, e abandone um punhado da multidão dos que necessitam de uma medicina de qualidade que poucos como ela são capazes de oferecer.
Suas últimas realizações já são capazes de afetar mais pacientes, pois em seu posto de trabalho já tem condições de instituir medidas criativas e engajadas numa melhor distribuição do acesso à medicina de excelência. A força de seu compromisso com o melhor possível para todos – o que se coaduna com a proposta original do SUS – foi capaz de mover os colegas envolvidos no mesmo trabalho a abraçarem sua proposta.
Talvez para alguns ela expresse em sua trajetória um aspecto do messianismo que acomete alguns dos médicos mais vocacionados; aspecto que após muita análise talvez permaneça de forma punctual em mim. E sabe? Não quero que este puncto seja apagado.
Em forma punctual isto se manifesta como ‘pensar grande’, ‘não ter alma pequena’.

Confira também...

Chicago, julho de 1994 Uma única vez estive em Chicago. Lembro-me de ruas amplas transversais...
“Toxicomania e adições: a clínica viva de Olievenstein” Diva Reale e Marcelo Soares da Cruz...
Uma estranha conexão surge entre um homem e uma voz feminina cuja natureza e origem...