(Imagem: The Marvelous Mrs. Maisel, 2017)
Esta construção idealizada – maquiando o efeito limitante da provável grave doença que ela porta – da figura de Yayoi, ofende aqueles com conhecimentos básicos de psiquiatria. A produção do documentário mostrando o processo criativo da artista restringe-se ao seu período nova iorquino. Imagens captadas pós Nova York enquanto ela pinta suas adoráveis e infinitamente repetidas bolinhas são as únicas que aparecem nos vídeos dos últimos 40 anos.
A ideia de quantos e diversificados profissionais competentes tem sido necessários para viabilizar a produção das inúmeras exposições feitas nas últimas décadas, omitida no documentário, acaba por desvelar e privilegiar o trabalho de bastidores que pela estratégia adotada no documentário deveria permanecer silencioso! Paradoxalmente, esta mesma estratégia tornou visível o trabalho engenhoso de um time de publicidade capaz de enfatizar e explorar a produção individual inicial de Yayoi (dos tempos de NY) até constituir uma marca. Ao produzir este efeito, desmancha e quebra aos olhos da psiquiatra a visão romantizada que os mesmos competentes publicitários souberam construir. Não fora o grave diagnóstico psiquiátrico silenciado na imagem pública veiculada, o efeito desta construção teria sido eficaz para não apenas apreciar a produção da artista, mas reconhecer o importante papel da qualidade da atenção psiquiátrica e de saúde mental que certamente permitiu que a monumental obra expressionista, minimalista e pop arte de Yayoi – como nos propõe a curadora retrospectiva exposta em Londres, Frances Morris – permanecesse em expansão nas últimas décadas.
O ocultamento dos anônimos profissionais de saúde mental, da equipe de administradores, marchands, empresários e negociantes de arte que sustentaram esta construção constituíram um não-dito que precisava ser anunciado com todas as letras!
O tributo a este trabalho em equipe pede que a quarta parede da mágica do construto publicitário se deixe romper! O reconhecimento do excelente trabalho conjunto pede visibilidade. A gana por reconhecimento de Yayoi, os caminhos por ela tomados em seu período nova iorquino podem ser conferidos nos vídeos¹ exibidos nas exposições que compuseram o testemunho da trajetória estadunidense na construção de sua vida artística. Para mim, trabalhadora de saúde mental, é lastimável que o temor associado ao preconceito e estigma associado a seu provável diagnóstico psiquiátrico tenha prevalecido na construção da marca Yayoi! Gostaria de fazer com este texto um tributo a estes profissionais que sustentaram sua tão longeva e bem sucedida carreira!
Viva Yayoi, personalidade ousada que rompeu com as amarras históricas que queriam esta mulher vivendo recatada e do lar, cujo trabalho de artista antecedeu, atraiu e sustentou aqueles cujo trabalho também a ajudou a sustentar aquilo que ela certamente mais amou: sua arte!
Mas afinal o que Yayoi Kusama e Mrs. Maisel tem em comum? Na próxima publicação do blog do Barato², finalizamos o texto com a seguinte frase:
“Criatura [Mrs. Maisel] e criadora (Yayoi) neste mercado da arte pop, evidenciaram como os autores, que construíram as narrativas de suas respectivas histórias, explicitam ou ocultam os percursos pessoais que sustentaram sua produção cultural. Mrs. Maisel é a personagem principal da série cuja trama narra sua vida pessoal enquanto apresenta a construção de sua incipiente carreira de comediante. No caso de Yayoi Kusama algumas peças documentais, como documentários propriamente ditos ou vídeos publicitários, reproduzem narrativas sobre esta artista”.
Criatura (Midge³) e criadora (Yayoi, artista plástica) habitantes do mundo das artes e do entretenimento, sofrem em sua materialidade originais os efeitos das forças do mercado da arte e da indústria do entretenimento. Mrs. Maisel, a personagem que se constrói como profissional nos 50 e 60, encontra no relato, jocosamente veraz de suas peripécias cotidianas, a fonte e a força de seu humor inspirado; e ela descobre que o sucesso e ou fracasso de seu trabalho dependem dela aprender a calibrar este jorro criativo.
Por sua vez, Yayoi-criadora, depende de vozes alheias para darem vida às narrativas que pretendem tornar conhecida sua história, nos fazendo apreciar aquilo que ela teria sido capaz de produzir, sobretudo nestes últimos 40 anos.
Uma investigação rápida de peças publicitárias – quatro pequenos vídeos do Instituto Tomie Ohtake – realizadas por ocasião da grande exposição retrospectiva de sua carreira, deixam evidente a excelência do trabalho estratégico publicitário proposto.
A produção e mascaramento da verdade carrega para si os riscos da sobrevivência de nossa integridade. O quanto e o quê se revela ou vela não pode ser ditado majoritariamente pela lógica de mercado; se isto acontecer, deixará em alguma medida as pistas da intencionalidade intrusiva, manipulativa. Acertar a medida, é o pulo do gato!
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¹ Parte da exposição Obsessão Infinita – Yayoi Kusama, retrospectiva da obra de 1949 a 2021, que pudemos assistir em Buenos Aires, São Paulo e Rio de Janeiro, entre 2013 e 2014!
² Na coluna mensal da Diva Reale, na primeira quarta-feira do mês.
³ Personagem principal da série The Marvelous Mrs.Maisel.
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Referências
CASA CLAUDIA. Retrospectiva da artista Yayoi Kusama chega ao Brasil. Disponível em: https://casaclaudia.abril.com.br/profissionais/retrospectiva-da-artista-yayoi-kusama-chega-ao-brasil/. Acesso em: 21 abr. 2021.
INSTITUTO TOMIE OHTAKE. Yayoi Kusama: Obsessão Infinita. Disponível em: https://www.institutotomieohtake.org.br/exposicoes/interna/obsessao-infinita-de-yayoi-kusama. Acesso em: 21 abr. 2021.
Série de quatro vídeos promocionais da exposição no Instituto Tomie Ohtake: