XII. Porque Dia da Mulher é todo dia! Autenticidade e sobrevivência na era dos likes I: O que Yayoi Kusama e Mrs. Maisel tem em comum?

(Imagem: The Marvelous Mrs. Maisel, 2017)

Escrevi este texto enquanto assistia à série The Marvelous Mrs. Maisel. Como fãs nos afligimos pela personagem Midge Maisel, uma dona de casa judia nova iorquina dos anos 50, quando ela sofre um ataque de cancelamento no mundo real. Ela caiu em desgraça por ter tido um surto de hiper honestidade indevida durante um stand-up, fazendo uma devassa de indiscrição, expondo o construto da comediante-marca ‘Sara Lennon’ [nome aproximado]. “Ela é fake!”, denuncia Maisel escarafunchando e expondo detalhes da vida privada da Sara, o que acaba por conquistar a ira da famosa contra si!
A Sra. Maisel, concebida ao fim da segunda década do século XXI, redime uma certa inocência à jovem personagem ambientada no final dos anos 50, apenas parcialmente, pois sua fonte cômica criativa que vinha do comentar jocosa e hiperrealisticamente suas experiências imediatas, ao se estender para a vida alheia, quase lhe trouxe o abortamento da incipiente carreira.
O ajuste de nossas manifestações – aquelas que se tornam públicas – seguindo a lógica de ‘repetir aquilo que agrada nosso público’ é, definitivamente, um apelo perigoso. Uma das tentações do demônio para nos afastar do caminho virtuoso. Qual a virtude mais diretamente ameaçada? A virtude da franqueza, espontaneidade, de que resulta nossa autenticidade.
Por sinal Mrs Maisel paga caro, pelo mal uso desta sua fonte criativa, sofrendo um desvio notável dos primeiros passos de sua carreira! Com um humor potente, cujas características marcantes a coloca naquilo que associamos ao humor judaico, a narrativa da história e construção da personagem assegura diversão e mantém uma dinâmica divertida ao longo das temporadas que vale a pena conferir! E carrega em si algo que muito apreciamos ao trazer a história da carreira de comediante pelo recorte de gênero feminino, relembrando o que algumas mulheres mesmo em condições socioeconômicas favoráveis precisaram enfrentar para seguir a carreira de seus sonhos.
Artista: quando a imagem pública se torna marca
Construir uma imagem, inclui uma operação de editar o que destoa. Daí vem o incômodo decorrente deste sentimento de risco de incorrer num excessivo distanciamento de nossa identidade em construção.
E quando o artista se torna marca? No atual estágio de pouca familiaridade com as práticas de comunicação e marketing é assim que o problema se formula para mim. E quando ele se torna marca, o quanto da pessoa do artista ainda é capaz de se manifestar para seu público? O quanto daquilo que é produzido ainda mantém algum valor intrínseco?
Além dos aspectos externos resultantes da prática sistematizada e profissionalizada de comunicação, me inquietam os efeitos internos: o ser para si, poderá ser corrompido pelo desejo de ser (amado) pelo outro? Será este um temor de validade universal? Ou será secundário a uma construção pessoal que precisou garimpar aspectos de si perdidos, que foram expropriados no processo de se tornar (hiper)funcional e bem-educada?
O que levou a emergência deste problema? A parte publicável encontra resposta no incômodo da psiquiatra experimentado frente ao fenômeno artístico-humano da obra e presença no cenário mundial de Yayoi Kusama. Nesta mesma semana em que estava curtindo a série Mrs. Maisel, enquanto zapeava a TV paga em busca de algo encontrei e reassisti uma parte de um documentário que conta a história desta grande artista quase centenária.
Por que incômodo? Porque os bastidores que sustentam sua produção ao longo dos últimos 40 anos, não aparecem nas narrativas que contam sua história, embora mencionem que a artista sofre de alguma condição psiquiátrica, severa o suficiente para que ela viva internada numa clínica psiquiátrica em Tóquio, desde seu retorno à cidade nos anos 70? O ocultamento e borramento do diagnóstico traz um erro grosseiro à narrativa adotada no documentário; de forma sintomática – sintoma que revela aos olhos da psiquiatra uma manipulação um tanto ingênua – é reunido o relato de que Yayoi ‘todos os dias sai da clínica psiquiátrica e vai para seu estúdio pintar’, com comentários destoantes em termos psicopatológicos feitos por leigos em saúde mental. Reuniram e editaram comentários de pessoas destacadas no mundo das artes (curadores, ocupantes de cargos importantes de museus e salas de exposições, críticos renomados, dentre outros) que ao falar de suas obras antigas, incluem o uso de termos técnicos de psicopatologia grosseiramente equivocados. Não que estes depoentes leigos precisassem conhecer o uso de termos técnicos e fazer raciocínio clínico consistente! Mas a ausência no documentário de qualquer entrevistado da área psi (psiquiatra ou outros) indica esta intenção de ocultar ou borrar o diagnóstico. Por uma razão simples, acessível ao senso comum: a gravidade do seu quadro se evidencia pelo fato de sua moradia dos últimos 40 anos ser uma clínica psiquiátrica.
(Imagem: Yayoi Kusama, reprodução arteref)

Esta construção idealizada – maquiando o efeito limitante da provável grave doença que ela porta – da figura de Yayoi, ofende aqueles com conhecimentos básicos de psiquiatria. A produção do documentário mostrando o processo criativo da artista restringe-se ao seu período nova iorquino. Imagens captadas pós Nova York enquanto ela pinta suas adoráveis e infinitamente repetidas bolinhas são as únicas que aparecem nos vídeos dos últimos 40 anos.

A ideia de quantos e diversificados profissionais competentes tem sido necessários para viabilizar a produção das inúmeras exposições feitas nas últimas décadas, omitida no documentário, acaba por desvelar e privilegiar o trabalho de bastidores que pela estratégia adotada no documentário deveria permanecer silencioso! Paradoxalmente, esta mesma estratégia tornou visível o trabalho engenhoso de um time de publicidade capaz de enfatizar e explorar a produção individual inicial de Yayoi (dos tempos de NY) até constituir uma marca. Ao produzir este efeito, desmancha e quebra aos olhos da psiquiatra a visão romantizada que os mesmos competentes publicitários souberam construir. Não fora o grave diagnóstico psiquiátrico silenciado na imagem pública veiculada, o efeito desta construção teria sido eficaz para não apenas apreciar a produção da artista, mas reconhecer o importante papel da qualidade da atenção psiquiátrica e de saúde mental que certamente permitiu que a monumental obra expressionista, minimalista e pop arte de Yayoi – como nos propõe a curadora retrospectiva exposta em Londres, Frances Morris – permanecesse em expansão nas últimas décadas.

O ocultamento dos anônimos profissionais de saúde mental, da equipe de administradores, marchands, empresários e negociantes de arte que sustentaram esta construção constituíram um não-dito que precisava ser anunciado com todas as letras!

O tributo a este trabalho em equipe pede que a quarta parede da mágica do construto publicitário se deixe romper! O reconhecimento do excelente trabalho conjunto pede visibilidade. A gana por reconhecimento de Yayoi, os caminhos por ela tomados em seu período nova iorquino podem ser conferidos nos vídeos¹ exibidos nas exposições que compuseram o testemunho da trajetória estadunidense na construção de sua vida artística. Para mim, trabalhadora de saúde mental, é lastimável que o temor associado ao preconceito e estigma associado a seu provável diagnóstico psiquiátrico tenha prevalecido na construção da marca Yayoi! Gostaria de fazer com este texto um tributo a estes profissionais que sustentaram sua tão longeva e bem sucedida carreira!

Viva Yayoi, personalidade ousada que rompeu com as amarras históricas que queriam esta mulher vivendo recatada e do lar, cujo trabalho de artista antecedeu, atraiu e sustentou aqueles cujo trabalho também a ajudou a sustentar aquilo que ela certamente mais amou: sua arte!

Mas afinal o que Yayoi Kusama e Mrs. Maisel tem em comum? Na próxima publicação do blog do Barato², finalizamos o texto com a seguinte frase:

“Criatura [Mrs. Maisel] e criadora (Yayoi) neste mercado da arte pop, evidenciaram como os autores, que construíram as narrativas de suas respectivas histórias, explicitam ou ocultam os percursos pessoais que sustentaram sua produção cultural. Mrs. Maisel é a personagem principal da série cuja trama narra sua vida pessoal enquanto apresenta a construção de sua incipiente carreira de comediante. No caso de Yayoi Kusama algumas peças documentais, como documentários propriamente ditos ou vídeos publicitários, reproduzem narrativas sobre esta artista”.

Criatura (Midge³) e criadora (Yayoi, artista plástica) habitantes do mundo das artes e do entretenimento, sofrem em sua materialidade originais os efeitos das forças do mercado da arte e da indústria do entretenimento. Mrs. Maisel, a personagem que se constrói como profissional nos 50 e 60, encontra no relato, jocosamente veraz de suas peripécias cotidianas, a fonte e a força de seu humor inspirado; e ela descobre que o sucesso e ou fracasso de seu trabalho dependem dela aprender a calibrar este jorro criativo.

Por sua vez, Yayoi-criadora, depende de vozes alheias para darem vida às narrativas que pretendem tornar conhecida sua história, nos fazendo apreciar aquilo que ela teria sido capaz de produzir, sobretudo nestes últimos 40 anos. 

Uma investigação rápida de peças publicitárias – quatro pequenos vídeos do Instituto Tomie Ohtake – realizadas por ocasião da grande exposição retrospectiva de sua carreira, deixam evidente a excelência do trabalho estratégico publicitário proposto.

A produção e mascaramento da verdade carrega para si os riscos da sobrevivência de nossa integridade. O quanto e o quê se revela ou vela não pode ser ditado majoritariamente pela lógica de mercado; se isto acontecer, deixará em alguma medida as pistas da intencionalidade intrusiva, manipulativa. Acertar a medida, é o pulo do gato! 

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¹ Parte da exposição Obsessão Infinita – Yayoi Kusama, retrospectiva da obra de 1949 a 2021, que pudemos assistir em Buenos Aires, São Paulo e Rio de Janeiro, entre 2013 e 2014!

² Na coluna mensal da Diva Reale, na primeira quarta-feira do mês.

³ Personagem principal da série The Marvelous Mrs.Maisel.

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Referências

CASA CLAUDIA. Retrospectiva da artista Yayoi Kusama chega ao Brasil. Disponível em: https://casaclaudia.abril.com.br/profissionais/retrospectiva-da-artista-yayoi-kusama-chega-ao-brasil/. Acesso em: 21 abr. 2021.

INSTITUTO TOMIE OHTAKE. Yayoi Kusama: Obsessão Infinita. Disponível em: https://www.institutotomieohtake.org.br/exposicoes/interna/obsessao-infinita-de-yayoi-kusama. Acesso em: 21 abr. 2021.

Série de quatro vídeos promocionais da exposição no Instituto Tomie Ohtake:

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