VII. Porque Dia da Mulher é todo dia! – The Bletchley Circle I: Mulher, matemática e morte

(Imagem: Rotten Tomatoes)
A série em foco traz as peripécias de quatro mulheres: Susan, Millie, Lucy e Jean que ajudaram a decifrar o código nazista. Após a guerra, se separaram; suas aventuras começam quando elas decidem reunir a equipe para encontrar um assassino que está aterrorizando Londres, ainda nos anos 50. Foram duas temporadas a partir 2012 com três e quatro episódios respectivamente.
Em 2018 lançaram uma sequência The Bletchley Circle – San Francisco, desta vez com oito episódios. Agora serão quatro mulheres: Iris e Hailey, estadunidenses, e as duas inglesas Millie e Jean, personagens da série original.
Millie e Jean se mudam para São Francisco atrás de um assassino serial que 14 anos antes cometera alguns assassinatos em Londres. Iris acaba por se juntar às inglesas pois o assassino está atuando no bairro onde mora.
Além da dica de uma série com personagens femininas que fogem dos estereótipos contemporâneos, visto que estão ambientadas nos anos 50, a trama de investigação policial bem engendrada certamente tem tudo para agradar aquelas e aqueles que gostam do gênero.
Mulheres cuja atividade durante a guerra – faziam parte da equipe que se dedicou a decifrar códigos militares – trazem um primeiro item incomum. O conjunto destes aspectos incomuns oferecem um brinde; fornecem uma satisfação feminina às espectadoras que não forem insensíveis às temáticas que empoderam, expandem, libertam a vida das mulheres de posições e papéis cristalizados. Neste texto vamos salientar temas e sensibilidades que compõem um olhar feminista discutindo questões da mulher na cultura, na vida doméstica, no trabalho, na vida afetiva e sexual dentre outros. Tomaremos por referência principal os temas discutidos nos verbetes do Dicionário crítico do Feminismo.
ALERTA DE SPOILER
PS: para aqueles que se interessarem em ver esta deliciosa série, e são ciosos e alérgicos a qualquer informação que possa ser interpretada como spoiler, recomendamos que assistam ao primeiro episódio e posteriormente leiam as matérias seguintes, feitas também em capítulos, onde se comenta de forma mais direta os episódios. Por este motivo optamos também em deixar um intervalo de tempo entre as publicações dedicadas a esta série.

(Hirata, Helena; Laborie, Françoise; Le Doaré, Hélène; Senotier, Danièle [orgs.]. Dicionário crítico do Feminismo. São Paulo, Ed. UNESP, 2009.)

Da exclusão à visibilidade histórica

Lembraremos que, contrariamente ao inglês, que possui dois termos para designar “aquilo que acontece” (story) e o relato que fazemos disso (History), o francês tem apenas um – Histoire (História) -, o que complica ainda mais as coisas, como se o relato fosse consubstancial às realidades de que ele pretende dar conta e que o transborda por todos os lados. De Michel Foucault a Paul Ricoeur, a epistemologia contemporânea sublinhou esse ponto. O relato histórico é olhar, escritura, artefato, não artificio, certamente, mas escolha intimamente ligada ao presente do escritor. O esquecimento de que as mulheres têm sido objeto não é uma simples perda de memória acidental e contingente, mas o resultado de uma exclusão consecutiva à própria definição de História, gesto público dos poderes, dos eventos e das guerras. Excluídas da cena pública pelas funções ditadas pela “natureza” e pela vontade dos deuses/de Deus, as mulheres não podiam aparecer nela a não ser como figurantes mudas, penetrando por arrombamento ou a título de exceção – as mulheres “excepcionais”, heroicas, santas ou escandalosas – relegando à sombra a massa das outras mulheres. Na Antiguidade greco-romana como na Idade Média cristã, o silêncio da História sobre as mulheres é impressionante. “Mulheres que sabemos sobre elas?”, interroga-se Georges Duby na conclusão de um de seus livros (1991), em que, entre nobres e clérigos, indaga o destino delas.

Quando a História se constitui como disciplina acadêmica e saber instituído, Michelet parece romper esse silêncio. Mas, ao assimilar as mulheres à natureza e os homens à cultura, ao atribuir às mulheres um papel maternal normativo, ele reproduz a ideologia dominante, aquela que, no mesmo momento, consolida a Antropologia nascente de Morgan e Bachofen. O positivismo de fim de século, centrado na história política, expulsa essas veleidades sexuadas. Os fundadores da Escola dos Anais – Marc Bloch e Lucien Febvre – e em seguida a segunda geração – Fernand Braudel, Ernest Labrousse – enfatizam o econômico e o social, instâncias assexuadas. A classe aparece então como uma categoria de análise das mutações sociais muito mais pertinente e dinâmica que a família, instância de reprodução, ligada à natureza, até mesmo à ordem moral. De maneira semelhante, trinta anos antes, a Sociologia de Émile Durkheim, orientada pelo “fato social”, havia suplantado a escola de Frédéric Le Play e as “monografias de família” da Sociedade de Economia Social, que tinham o mérito de atribuir grande destaque ao papel das mulheres na vida doméstica. Como acontece frequentemente, o conflito das sociologias recobriu escolhas politicas e ideológicas – a República contra a Igreja – perfeitamente justificadas, mas que podiam ter igualmente efeitos perversos no domínio da pesquisa. Neste caso, a classe recalca a família, como a produção, identificada com o único produto físico, oculta o doméstico e o operário – metalúrgico, mineiro, da construção civil – suplanta a dona de casa no simbolismo do fazer.

O aparecimento de uma História das mulheres – portanto uma História sexuada – se produz no inicio dos anos 70. Três séries de fatores contribuíram para isso: 1) os científicos, principalmente a influência da Antropologia e da demografia histórica, que reintegram a família e o corpo na trama da História, enquanto a crise dos grandes paradigmas explicativos favorece a fragmentação da História – falemos de “esmigalhamento”- e a eclosão de uma grande diversidade de objetos, a consideração de novos atores – a criança, os jovens – e de novas intrigas – a vida privada, por exemplo; 2) os sociológicos: a presença crescente de mulheres na universidade como estudantes e em seguida como docentes, portadoras de interrogações novas; 3) os políticos: o movimento de liberação das mulheres, cuja primeira preocupação não era fazer a História, induziu a curiosidades, efeitos, até mesmo à vontade de operar uma “ruptura epistemológica” nas Ciências Humanas e Sociais. Todas as disciplinas são de alguma forma atingidas, e a História, disciplina no entanto viril por sua sociologia e seus valores, especialmente na França, em razão do forte componente histórico da identidade nacional, passa a sê-lo a partir do começo dos anos 70. Cursos, seminários e colóquios contribuem para isso, enquanto mestrados e teses constituem uma “acumulação primitiva” de que a História das mulheres no Ocidente (Duby: Perrot, 1991-1992 é uma primeira cristalização e legitimação.” p. 112-113.

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