Resenha de SCHLAG, A. K. et al. Medical cannabis in the UK: From principle to practice. Journal of Psychopharmacology, Vol. 34(9) 931-937, 2020.
O artigo “Medical Cannabis in the UK: from principle to practice”, escrito por Anne Katrin Schlag e colaboradores, e publicado no Journal of Psychopharmacology em setembro de 2020, é uma revisão bastante atual que aborda questões que perpassam a aceitação e familiarização da Cannabis medicinal no meio médico. O texto relata a situação das prescrições no Reino Unido quase dois anos após sua liberação. Tal processo se deu a partir da intensa procura por parte dos pacientes, juntamente com a pressão da grande mídia argumentando pelo tratamento de crianças com epilepsia refratária, que haviam tido melhoras consideráveis com o uso da Cannabis. Todavia, apesar da grande demanda popular, o trabalho aponta para a dinâmica de acesso à tal medicina sob uma ótica de grande controvérsia: entre novembro de 2018 (data da liberação) e março de 2020, menos de 60 prescrições foram feitas (sendo apenas 12 pelo sistema de saúde público, o NHS). Neste mesmo período, 1.4 milhões de pessoas referiram o uso ilícito da planta para tratar suas questões de saúde, segundo pesquisa feita com pacientes pelo Centre for Medical Cannabis em 2020.
Diante dessa enorme discrepância entre demanda e prescrição – rara de se encontrar na medicina – o artigo elenca fatores que podem estar contribuindo para esse cenário, em geral relacionados à insegurança dos profissionais sobre como prescrever e em que condições. Isto não é de se estranhar, dado o contexto de restrito acesso e produção de publicações científicas sobre Cannabis no meio médico antes de 2018, limitando as informações acerca dos efeitos positivos ou negativos, de seu uso medicinal. Em decorrência disso, desenrola-se a maioria das questões que dificultam o acesso, a prescrição e a democratização dessa medicina. Também são citadas como limitantes da prescrição o receio de seus efeitos adversos e as questões éticas envolvidas na prescrição de uma substância considerada “pouco estudada” no que se refere a ensaios clínicos duplo-cego randomizados, placebo controlados etcetc– o chuchuzinho dos doutores, por ser o desenho de estudo epidemiológico, de fato, mais seguro e mais confiável como referência para incorporar novas drogas em suas prescrições.
A resistência em considerar outras formas de evidência, como estudos observacionais, estudos de “medicinas experimentais”, relatos de pacientes que já tem experiências bem sucedidas com o uso, dentre outros, dificulta a aproximação dos prescritores de uma prática que já é realidade para milhões de pessoas que, independente do quanto revela a literatura científica, estão sendo contemplados pelos benefícios terapêuticos da planta.
O que se observa é que, apesar de um passo à frente, este foi ainda muito acanhado, pois a liberação por parte das recomendações do National Institute for Heath and Care Excellence (NICE) ocorreu apenas para um limitado número de 4 situações clínicas, e apenas quando refratárias aos tratamentos convencionais. Não é mencionada nenhuma condição psiquiátrica ou mesmo dor crônica, ainda que haja elevado nível de evidência do uso de canabinóides para o tratamento desta última, de acordo com a lista da NASEM (National Academies of Science, Engineering, and Medicine).
Sobre a efetividade no tratamento de condições psiquiátricas como depressão, síndrome de Tourette, TDAH, TEPT, psicose e ansiedade, é mencionada uma meta-análise que considerou de baixa evidência o uso dos canabinoides, não sendo suficiente para justificar sua escolha. Porém, uma observação válida é de que os estudos analisados utilizaram canabinoides sintéticos e não derivados da planta; a diferença da origem do canabinoide usado pode resultar em efeitos terapêuticos significativamente diferentes. Vale salientar que já são utilizados inúmeros destes derivados da planta nos EUA e Canadá. Além disso, já foi demonstrado pela experiência de países que legalizaram seu uso, a importante diminuição da procura por opioides, sendo extremamente positiva em países como EUA, onde, há anos observa-se uma epidemia de casos de dependência e overdose pelo uso descomedido de tais medicamentos.
Mesmo apontando uma lista de entraves para a aceitação da Cannabis medicinal, o artigo é bem sucedido em apresentar os pontos positivos desse processo, bem como é generoso em sugestões para estimular a busca pelo conhecimento sobre a substância e como realizar uma prescrição de forma adequada. Estão entre elas questões que já deveriam ser rotina de qualquer médico que tenha uma relação humanizada e singular com seus pacientes, exercendo a prática de um cuidado atencioso e integrado. Estas sugestões se referem principalmente à recomendação de adotar: um monitoramento seguro das prescrições e de seus efeitos esperados e adversos; uma boa comunicação com o paciente, que informe riscos, benefícios e mesmo compartilhe um alerta sobre questões incertas sobre o tratamento. O apanhado de registros sobre esse acompanhamento longitudinal poderia ser analisado e compartilhado em uma base de dados que serviria para consulta por outros médicos prescritores, além de também estimular novos estudos na área. Por último o artigo ressalta a busca dos profissionais por mais educação no assunto, essencial para melhor se apropriarem do conhecimento sobre o tema.
Trata-se de um texto denso, que reúne uma gama de informações valiosas não apenas para os profissionais da saúde do Reino Unido, mas para os de todos os países que estão no processo de reconhecimento do enorme valor terapêutico da senhora Maria Juana que, como citou Freeman (2019), não se trata apenas de uma medicina, mas de uma extensa família de medicinas e medicamentos. Consideramos a leitura desse artigo de grande relevância para que profissionais do mundo todo comecem também a abrir os olhos e se preparar para aprender mais sobre essa plantinha tão poderosa, considerada uma das primeiras medicinas da humanidade. A escassa literatura científica padrão não deve desencorajar o desenvolvimento de novas formas de estudo, sobretudo daqueles que respeitem a autonomia de pacientes que buscam por ela e estão dispostos a contribuir com o fazer científico junto conosco e demais pesquisadores e pesquisadoras do mundo todo.
Por fim, compartilho aqui alguns links mencionados no artigo enquanto importantes fontes de informações baseadas em evidência sobre o assunto, disponibilizadas pelo governo do Reino Unido, que já são referências para o aprendizado de milhares de profissionais do cuidado em saúde.
https://taomc.org/en/ – The Academy of Medical Cannabis: oferece um programa gratuito de 12 módulos sobre o básico da Cannabis.
https://mymedic.org.uk/ – Drug Science: portal educacional online com informações baseadas em evidência sobre o uso de cannabis medicinal, disponibilizou uma série de seminários sobre o tema para profissionais da saúde e uma outra versão também para estudantes de medicina.
Este último, disponibilizado no www.drugscience.org.uk – maior corpo científico e independente sobre drogas do Reino Unido.
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Maria Clara Pires Lima, potiguar, estudante do 5º ano de medicina (UFRN), membro do coletivo multicultural CelebraTe Uma Troca Positiva e ex-aluna do segundo módulo d’O Barato.