Comentários sobre Primeiras Imagens. In: O Oráculo da Noite: A história e a ciência do sonho. Sidarta Ribeiro. Companhia das Letras, 2019.
Uma mulher caminhava pela sua cidade embaixo de um céu laranja e azul cortado por arranha-céus que subiam e desciam do chão como toupeiras enquanto um trio elétrico tocava músicas natalinas seguido por uma multidão de gansos. Ela parava a avenida principal, atravessando a faixa de pedestre enquanto empurrava um carrinho de bebê que, quando olhou para dentro, encontrou sua própria mãe em sua forma recém-nascida.
Nossa, o que rolou?
É possível alguém não achar fantástico o fato de que sempre que nosso corpo adormece uma realidade completamente imprevista surge diante – ou melhor, detrás – dos nossos olhos? Ainda mais intrigante é como cenas do cotidiano se unem a elementos buscados no fundo do baú da aleatoriedade sem nenhum compromisso com a lógica da vida real, mas isso não causa nenhum estranhamento.
Bom, não até a volta da vigília. Esse é o mundo dos sonhos, fenômeno milenar originário da capacidade cerebral de entrar em sono de ondas lentas e sono REM, e que passou a ser objeto de estudo da ciência há algumas décadas. Ainda assim, segue sendo um enorme mistério e alvo de múltiplas teorias provindas de todos os lados: psicanálise, psicologia, biologia, religião, antropologia, mitologia e muito mais.
E para falar desse assunto, tivemos como inspiração alguns trechos do livro “O Oráculo da Noite: A história e a ciência do sonho”, de autoria do respeitado neurocientista Sidarta Ribeiro, professor e vice diretor do Instituto do Cérebro (UFRN), pesquisador nas áreas do sono, sonhos, psicodélicos e política de drogas. Sidarta traz, brilhantemente, uma coletânea de histórias, pesquisas e relatos pessoais que vão fazendo crescer o interesse do leitor pelo universo onírico a cada página.
Em seu quinto capítulo, intitulado “Primeiras Imagens”, o cientista descreve cronologicamente o desenvolvimento do sonhar de uma pessoa, comentando desde os primeiros sinais sugestivos de atividade onírica de um feto à complexidade de enredos dos sonhos de adultos. Fica evidente que o caminho até a “competência onírica”, adquirida com a idade, segue o amadurecimento cognitivo e emocional da vida, a partir do uso e percepção dos sentidos, motricidade, linguagem e socialização. Enquanto um bebê viverá mais sensações primárias e, possivelmente, limitadas ao plano físico ou fisiológico – como temperatura, toques, gravidade e fome, um adolescente experimenta uma complexidade maior de eventos, emoções e insights enquanto sonha.
Seguindo o raciocínio de que os sonhos acompanham o desenvolvimento mental da vigília, muitas outras teorias podem ser feitas sobre o conteúdo deles. As experiências do mundo real ativam milhões de sinapses que continuam a agitar nossa mente enquanto dormimos, selecionando as memórias que querem guardar e as que querem apagar. Por isso também se diz que o aprendizado é consolidado durante o sono. Mas além disso, é possível pensar o quanto o que nós vivemos influencia no que sonhamos, sendo observado a partir da coleta de relatos de sonhos de diferentes idades, culturas e mesmo entre os gêneros. Ao longo do capítulo, o autor destrincha resultados de pesquisas realizadas em diversos contextos históricos, comparando, por exemplo, sonhos de crianças que habitavam zonas de conflitos e guerras com os de outras que desfrutavam de maior segurança e bem estar. É nítida a discrepância entre os discursos: enquanto estas viviam sonhos com emoções triviais e banais do cotidiano, aquelas eram aterrorizadas por pesadelos lancinantes e bélicos.
Trazendo para o nosso contexto pandêmico atual, encontramos mais uma evidência da maleabilidade onírica da nossa mente: o crescente relato de sonhos, mais precisamente sonhos bizarros, após o decreto de calamidade sanitária que vem se arrastando há quase um ano. Ainda no início da quarentena, o estudo da pesquisadora Natália Mota (também do Instituto do Cérebro), que já vinha em curso antes da pandemia, encontrou uma mudança de padrão de sonhos compartilhada por uma parte significativa dos indivíduos da pesquisa. Eles apresentaram maior proporção nas palavras e sensações relacionadas à raiva e tristeza, com alta prevalência de expressões equivalentes a contaminação e limpeza, indicando que também refletem sofrimento mental. Além disso, os enredos em geral, traziam questões sobre mudanças de hábitos, em especial os que tratavam das necessidades de maior controle de higiene e prevenção de contaminação.
Tais relatos são dos primeiros meses de pandemia (março e abril), e vale ressaltar que apenas um dos participantes da pesquisa adquiriu COVID-19 e outro teve algum familiar contaminado. Acredita-se que hoje, esses relatos teriam tramas ainda mais assustadoras do que higienizar as compras, tendo em vista os sucessivos desdobramentos catastróficos dessa pandemia e as mais de 1000 mortes por dia alcançadas no mês de fevereiro deste ano de 2021. Não tem como desconsiderar o enorme trauma que marcará o consciente e o inconsciente coletivo dos brasileiros, órfãos de medidas eficazes para conter o alastramento desse vírus. Se após tantos meses de pandemia e caos instalados, tivemos que mudar hábitos, rotinas, companhias, entre outros, imagine então o quanto não mudamos nosso pensar e sonhar?
Mas então, os sonhos sugerem tudo isso, mas será que, de fato, significam alguma coisa? Bom, essa resposta depende do sonhador. Assim como fé, religião e mesmo condutas terapêuticas dependem de quem acredita nelas, assim os sonhos também podem ter interpretações valiosas para quem os decide analisar. Ao considerarmos que civilizações antigas se baseavam neles para tomar decisões políticas e aprimorar a medicina, nos deparamos com a influência do poder revelador de um sonho. Claro que, ao longo da história, com o desenvolvimento de novas habilidades como a escrita, e com a reorganização social e cultural, a importância dos sonhos foi sendo realocada, mas não necessariamente perdida. Sidarta acredita e encoraja com constância a prática da análise dos sonhos, defendendo que eles são um verdadeiro mergulho através de uma colcha de retalhos emocionais até os subterrâneos de nossa consciência. Interpretá-los pode ser a chave para descobrir a gênese da nossa autoconsciência e como isso influenciará no desenvolvimento de uma identidade pessoal bem definida.
Para isso, sugere algumas dicas ao longo da leitura que vamos também compartilhar aqui caso queira começar a pôr em prática o seu sonhário:
Autossugestão. Repetir para si antes de dormir: “vou sonhar, lembrar e relatar.”
Descrever os sonhos imediatamente ao acordar! Para isso, durma já perto de lápis e papel, mas antes de anotar, mantenha-se deitado sem se movimentar, tentando resgatar o maior número de informações possíveis. Ao lembrar de uma imagem, agarre-se a ela e espere as demais memórias surgirem. Anote tudo que lembrar com o máximo de detalhes que conseguir.
Ter uma higiene do sono. É fato que a correria do dia a dia, uma hora ou outra, vai querer tirar o foco da sua saúde. Mas é bom lembrar da importância que a qualidade do sono tem no seu bem estar, humor e capacidade de resolver os conflitos diários. Uma pesquisa recente com mais de 55 mil universitários revelou que déficits de sono podem trazer mais prejuízos à saúde e desempenho do que o uso excessivo de álcool ou maconha, depressão e ansiedade.
É normal, no início, preencher apenas algumas linhas com frases desconexas ou cenários que podem não fazer muito sentido. Mas com a persistência da prática, em poucos dias já é possível recordar o suficiente para várias páginas de um diário de sonhos e, a partir deles, descobrir e redescobrir aspectos de si que, se fôssemos depender apenas do consciente vigil, levaríamos muito mais tempo para dar atenção.
Sem dúvidas, esse tal Oráculo da Noite desperta muitas inquietações em quem o procura. Sem dar nenhuma resposta que não gere mais questionamentos, abre-se diante do leitor um novo cenário da própria existência e mais um campo de estudos do self. Desvendar os mistérios de Morfeu, o deus grego dos Sonhos, é uma odisseia sem fim, com infinitas possibilidades de enredos, clímax, reviravoltas e recomeços. A vastidão do universo onírico é a mesma vastidão do Universo que habitamos. Quiçá maior. Para conhecê-lo por completo, precisaríamos conhecer cada unidade do multiverso, os plurais que existem em cada ser que sonha, que pensa, sente, se move e interpreta a vida de um jeito singular.
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Maria Clara Pires Lima, potiguar, estudante do 5º ano de medicina (UFRN), membro do coletivo multicultural CelebraTe Uma Troca Positiva e ex-aluna do segundo módulo d’O Barato.