Sobre traumas e maçãs (Pieces of a Woman)

(Imagem: “Pieces Of A Woman” de Gerardo Lisanti)
O drama Pieces of a Woman (2020), do diretor húngaro Kornél Mundruczó, representa uma oportunidade singular para pensarmos o processo doloroso de despedaçamento da vida subjetiva quando atravessada por um trauma de grandes proporções: a morte de um filho segundos após seu nascimento, no instante seguinte à saída da barriga da mãe, momento em que o bebê repousava em seus braços.
A história da personagem Martha Weiss (Vanessa Kirby), uma das filhas de uma mãe judia que emigrou da Europa para os Estados Unidos, é narrada num espaço temporal relativamente curto, na cidade de Boston. São sete meses desde a cena inicial de um parto domiciliar, no mês de setembro, até o mês de março do ano seguinte. Um ciclo vital que abrange três estações: outono, inverno e primavera. De modo geral, podemos dizer que o filme trata dos ciclos da vida, mas também e sobretudo dos traumas que ameaçam a sua continuidade. Martha e o marido Sean (Shia Labeouf), operário na construção de uma grande ponte sobre o rio Charles, contratam uma parteira para a realização do parto domiciliar e aguardam o nascimento de sua primeira filha. Eva (Molly Parker) é a parteira que substitui Bárbara, aquela que havia sido contratada pelo casal, mas que não pôde realizar o parto por estar ocupada com outro nascimento. Esta surpresa é a primeira de uma série de complicações em que as coisas vão mal e a bebê morre após um curtíssimo instante de vida. Um trauma que deixa em pedaços a mãe, mas não só. Seu casamento acaba, assim como o vínculo familiar de Martha com a mãe e a irmã também parece implodir entre queixas e acusações ressentidas. Sean revive uma recaída no abuso de substâncias químicas e se perde também no trabalho. Incapaz de continuar a construção da ponte sobre o rio caudaloso, refugia-se em Seattle, a cidade presente em seus devaneios e lembranças de um glorioso tempo passado das bandas de Rock do movimento musical underground.
O tempo para. E a saída encontrada por Elizabeth (Ellen Burstyn), mãe de Martha, é o financiamento de um processo criminal contra a parteira. Ao longo do filme percebemos que Elizabeth atua sobre os relacionamentos familiares e obstáculos da vida impondo-se financeiramente. O poder do dinheiro funciona como uma espécie de ancoragem e resposta defensiva às suas frustrações. A tentativa, por via judicial, de reparação pela perda da neta reabre uma porta para o seu próprio passado familiar traumático de judeus perseguidos pelos nazistas. O processo é encampado por Elizabeth à revelia de Martha, que após a perda da filha está mergulhada num processo de luto, passando boa parte do tempo às voltas com a germinação de sementes de maçã. Para Martha não havia reparação possível para a morte da filha.
Estar diante de uma reparação impossível levou a personagem a atravessar sua experiência de perda e restituir uma nova forma à vida em pedaços. Ao testemunhar no processo criminal contra Eva, Martha foi obrigada a responder à defesa da parteira a seguinte questão: “qual foi seu sentimento ao ter a filha viva nos braços assim que ela nasceu?” Das profundezas de um estado mental afundado em perplexidade, suas palavras surgiram tentando articular um universo desde então atravessado pelo caos. Ela disse que “sentiu um cheiro de maçã”, o que provocou a surpresa e incredulidade do advogado de defesa.
O cheiro da maçã disparou em Martha uma memória de vida para muito além de sua experiência traumática. Uma espécie de relembrança do sentido do Self (“self verdadeiro”), como diria o psicanalista norte-americano Christopher Bollas, capaz de restabelecer uma nova “gramática do ser e do relacionar-se” sobre os estilhaços deixados pelo evento disruptivo. Em outras palavras, a experiência evocada por Martha ao relembrar os momentos da filha em seus braços abriu caminho para a perlaboração do trauma. Em seguida à resposta aparentemente confusa dada ao tribunal, Martha vai buscar as fotografias que haviam sido tiradas pelo marido logo após o nascimento da filha, e a imagem da bebê com vida nos braços da mãe revelou algo que não mais poderia se perder. Uma segunda experiência estética – a imagem da fotografia da mãe com a filha nos braços – transformou-se num arquivo precioso, fonte de vida. Tais experiências foram responsáveis pela transformação da memória, uma travessia alquímica da vida que erige sobre os traços da morte uma ponte conectando os elementos vitais: a presença do amor entre mãe e filha estava lá a despeito da morte precoce da filha.
O filme Pieces of a Woman nos convida a pensar também o alcance do olhar psicanalítico sobre a experiência estética do sujeito. Desde seu primeiro livro, A sombra do objeto (1987), a obra de C. Bollas testemunha um esforço vigoroso de abarcar a potência da relação que os sujeitos estabelecem consigo mesmos através de suas experiências estéticas transformadoras. Em outras palavras, a dimensão estética constitutiva do ser humano é identificada pelo autor nos momentos em que o encontro com um “objeto transformacional” restitui a processualidade da existência e garante a “continuidade do ser”. Para Bollas, trata-se de uma “estética dos sentidos” que é criada e recriada permanentemente, como uma segunda natureza; e, nesse sentido, somos todos capazes de realizar no mundo uma “expressão idiomática” singular, dado que no registro mais profundo do Eu habita um “jogo de formas” esteticamente organizado. Os momentos de encontro com tais objetos se desdobram num processo de integração psíquica, ou seja, um acontecimento que marca o instante em que a vida subjetiva se torna parte genuína daquilo que a ultrapassa. De acordo com Bollas, “o momento estético é uma ressurreição evocativa da condição egoica precoce, muitas vezes produzida por uma ressonância repentina e misteriosa com um objeto, um momento em que o sujeito é capturado por uma intensa ilusão de estar sendo escolhido pelo ambiente em alguma experiência profundamente reverente”.
Gostaria de propor a leitura da última cena do filme através da perspectiva de Bollas, segundo a qual a experiência de um objeto estético pode transformar a vida subjetiva, restituindo-a em novas dimensões de espaço e tempo. As maçãs, desta vez, compõem a cena em que uma outra menina, supostamente filha de Martha, brinca sobre uma macieira e realiza um modo de estar vivo que é bastante precioso, pois que deixa como herança um registro duradouro – uma sensação – de que a vida faz sentido. Para Martha e sua filha, o ciclo se reinicia, entre as maçãs, reinstaurando uma nova gramática do ser e do relacionar-se.
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João Paulo Ayub é Psicanalista e Dr. em Ciências Sociais.

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