Por que trazer o não-dito à baila?

O não-dito é um dizer que vem do lugar que se deve calar.

Miriam Debieux Rosa

Poderia começar a responder à questão dizendo que é uma forma de reconhecer e prestar um tributo à importância que o aprendizado do pensamento clínico de Olievenstein teve na minha formação clínica, pois foi ele que me apresentou esta categoria clínica. Mas isto não basta: a principal razão é que o não-dito se impõe como categoria organizadora do raciocínio clínico com altíssima frequência. (Reale, 2015; Reale, Brasiliano, 2016).

Mesmo sem ter estudado a origem deste termo, portanto ainda claudicando na forma de situá-lo no plano teórico-conceitual em psicanálise, a força que emana de sua pregnância no raciocínio clínico faz com que aconteça com muita frequência que eu me veja recorrendo a ele. Seja conversando sobre padrões de acontecimentos envolvendo pacientes, seja como chave de leitura para deslindar a trama constitutiva de algum personagem de algum filme ou série que eu tenha assistido.

Chegou às minhas mãos o livro de Miriam Debiuex Rosa Histórias que não se contam. O não-dito na psicanálise com crianças e adolescentes. E nele descobri ao mesmo tempo a razão desta alta pregnância e a razão pela qual sua conceituação sempre me escapou! O livro é um desdobramento de uma tese de doutorado da mesma autora sobre O não-dito e a psicanálise com crianças, situado no campo psicanalítico lacaniano. Esta foi a principal formação teórica psicanalítica de Olievenstein, e por ela passei por seis meses enquanto era quintoanista de medicina e dela me afastei ao buscar minha formação em psicanálise em outras paragens.

Também o fato de ter sido psiquiatra do Serviço da Infância e Adolescência do IPQ-HC/FMUSP, manteve presente a força dos não-ditos na clínica, evidenciados na escuta por 15 anos das histórias lacunares ou caladasdas famílias, crianças e adolescentes que passaram por nosso ambulatório (ROTHSCHILD, REALE, 2001; Reale, 2002).

Conforme nos apresenta Rosa (2009, p. 21), o levantamento bibliográfico permitiu que os não-ditos pudessem ser considerados como um conglomerado de não dizeres formado por diferentes categorias de formas de dizer e não-dizer ou calar que se constituem em:

1.     os ditos possíveis

a.     o mal-entendido

b.     o mal-dito

2.     ditos impossíveis

a.     o indizível e o desejo

b.     o impensável e o sagrado

3.     não ditos “voluntários” (relacionados ao Outro)

a.     o implícito

b.     as regras sociais e mitos

c.      o segredo

(Miriam Debiuex Rosa. Histórias que não se contam. O não-dito na psicanálise com crianças e adolescentes. Casa Do Psicologo; 1ª edição, 2009)

Além da satisfação de começar a poder preencher minimamente esta lacuna, observamos que este amplo halo conotativo, agregado a uma qualidade crossover, atribuído ao mesmo termo, fala deste aspecto um tanto fugidio do termo para ser conceituado e lembrado. Quando associado à literatura, crossover¹ aufere a uma história ou texto literário qualidades de transição, deslizamento ou entroncamento, superposição e conjunção de histórias sendo compartilhadas por um mesmo personagem. Indica uma instabilidade ou recriação de uma história original, agora em parte recontada em contexto distinto. Posso pressupor que a dificuldade encontrada por mim para reter seu significado é um sintoma da própria natureza ambígua, esquiva e fugidia dos fenômenos que comumente associamos ao termo não-dito.

Embora os efeitos do não-dito sejam bem conhecidos naqueles que tiveram suas histórias pessoais, amputadas ou deformadas², creio que o uso do termo permanece mais circunscrito à escola francesa de psicanálise, sobretudo ao campo lacaniano. No entanto o reconhecimento dos efeitos disruptivos e adoecedores dos temas não-ditos são reconhecidos dentro de outros campos terapêuticos (REALE; Brasiliano, 2016). É um exemplo disso a Terapia familiar sistêmica, que reconhece que a importância que determinados sintomas ou quadro psicopatológicos podem ter uma origem psicopatológica longínqua, vindo a surgir em gerações posteriores; e esta condição é muitas vezes associada a presença de um segredo familiar, cujos efeitos podem atravessar mais de uma geração.

Importância similar é dada ao não-dito quando por meio do conceito da cripta Abraham & Torok (1995) rastreiam e propõem os caminhos pelos quais se constituem formas de adoecimento associadas a determinados tipos de não-dito ou silenciamentos.

Um paciente com um grave transtorno de personalidade, que carregava um oco onde na saúde estaria localizado um sentimento de si, esteve na sua adolescência envolvido numa história de assassinato no trânsito, por dirigir embriagado que fora encoberto pelo arquivamento do processo criminal, graças à corrupção de policiais. Os efeitos deste não-dito, silenciando a culpa pela morte de desconhecidos, poderá ser sentido em gerações futuras?

Os não-ditos podem ter origens distintas. Condições transgressoras, sejam elas movidas por ideais louváveis, ou por franca contravenção ou atividade criminosa, produzem efeitos pela situação das crianças que são instruídas a esconderem ou omitirem determinados aspectos de sua vida e história familiar.

Em nossa experiência a cristalização de sintomatologia aditiva, configurando uma verdadeira montagem toxicomaníaca, pode se manifestar em alguns dos filhos destas famílias, muitas vezes coincidindo com ocuparem a posição de pacientes designados.

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¹ Termo Crossover: fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/Crossover consultado em 18/03/2021.

² Remetemos o leitor ao filme de Marco Bellochio, Belos Sonhos, onde o personagem principal carrega durante grande parte de sua vida efeitos agravantes relacionados a um luto infantil, pela associação desta perda a um não-dito. 

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Referências

ABRAHAM, N. & TOROK, M. A casca e o núcleo. São Paulo, Escuta, 1995.

Belos sonhos (2016), direção Marco Bellochio. Fonte: http://www.adorocinema.com/filmes/filme-239722/

REALE, D. Psicoterapia Dinâmica Breve de Adolescentes. In: ASSUMPÇÃO Jr., F.; REALE, D. (ed.) Práticas Psicoterápicas da Infância e Adolescência. São Paulo, Manole, 2002.

 

REALE, D. Infâmia. Comentários caso clinico, II Seminário clinico, Vº Congresso, ABRAMD, Brasilia, 2015.

 

REALE, D.; BRASILIANO, S. Negócios em família: do escancarado ao velado II”, VII Congresso Internacional de Psicanálise de Casal e Família, Universidade Anhembi Morumbi, São Paulo, 4 agosto/2016.

ROSA, M. D. Histórias que não se contam. O não-dito na psicanálise com crianças e adolescentes. São Paulo, Caso do Psicólogo, 2009.

ROTHSCHILD, R; REALE, D. Psicoterapia familiar breve: estudo de caso. In: GRANDESSO, M. A. (org.) Terapia e justiça social: respostas éticas a questões de dor em terapia. São Paulo, Associação Paulista de Terapia Familiar, 2001.

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