Pode aglomerar? Em tela, pode ser!

A curiosa disposição dos quadros na parede, chama a atenção da quase-confinada visitante da exposição Destaques do acervo, Territórios da arte, da Pinacoteca do Estado de são Paulo.

Por que tenho a impressão de estar diante de uma disposição incomum de quadros? Num primeiro momento respondo a isso dizendo: porque todos estamos saudosos da lembrança de aglomerações ainda inconscientes de que viriam a ser chamadas assim, e podiam ser simplesmente encontros festivos e divertidos com alguns amigos, acontecidas num passado que cada vez parece estar mais distante. O ‘todos’ a que me refiro são aqueles que podem permanecer cautelosamente recolhidos, sopesando riscos cada vez que se permitem sair e fazer um programa, cuidadosamente programado e negociado internamente.

Só num segundo momento me lembro de uma exposição realizada pela Caixa Cultural, localizada no coração tão maltratado da cidade: a Praça da Sé! Havia uma parede muito alta lotada de imagens, cuja identidade já se apagou de minha memória. Talvez Fajardo? Não era; após uma ajudinha do meu google-privé de arte e artista descobri, era o Farnese! Era um artista que coletava, em suas andanças pelas imediações da natureza onde morava, objetos descartados, às vezes deteriorados ao longo do tempo. E depois fustigava ainda mais estes objetos, como pedaços de corpos de bonecas, perfurando-lhe um olho, derretendo e queimando outra parte, fundindo com algum outro.

(Farnese de Andrade, “Angelus” 1966-71)

Eram objetos-peças alusivos a potes de formol de algum museu de anatomia meio aterrador, como aquele que existe em minha saudosa FMUSP! Anatomia de uma psicopatologia a céu aberto, oferecendo aos olhos desatentos um retrato do que ninguém quer ver. Será que estamos vivendo já os efeitos do apagamento das memórias daquilo que se tornou uma indesejada anomalia que não queremos ver nem viver? Nomeio apenas aquelas que se oferecem aos olhos como reunião de muitas coisas em estado de aglomeração? Até as coisas precisam estar distanciadas? Bem em conformidade com o hit da decoração, o bom gosto continua a se espelhar em espaços amplos e clean. Será que a decoração ignora o quanto é raro dispor de espaços assim avantajados? Ou ela foi concebida exclusivamente para aqueles que de fato podem dispor destes espaços? Mas as associações com aglomerados expostos continuam: vem as salas das igrejas dedicadas a guardar os ex-votos. E museus laicos ou não, trataram de arranjar estes objetos prenhes de devoção em espaços de exposição onde eles podem nos contar em sua plasticidade de silêncio tagarela suas histórias de fé, medo e gratidão. O luto não elaborado de centenas de milhares de mortos, dentre os quais podemos ter alguns mais próximos ou muito próximos, exerce sua tremenda pressão silenciosa daquele ponto sem volta e sem continuidade.

Mas voltemos ao prazer de observar rostos que se oferecem ao olhar, olhando distraidamente para algo em seu próprio mundo pictural, desconhecendo que estamos lá do outro lado, curiosos de suas razões, pensamentos e sentimentos que tornam suas expressões ainda mais interessantes a nossos olhos.

E encontramos também aqueles que também nos observam curiosos ou implacáveis, capturando nosso olhar, não importa que nos afastamos deles, para um lado ou para o outro, e que parecem nos seguir enquanto para eles estivermos olhando. E uma brincadeira com este olhar capturado pode se instalar, nos distraindo, por alguns minutos a mais, frente à tela. Para onde voltam seu olhar quando já nos distanciamos deles? Será que os fecham e pacientes, aguardam que novos visitantes se aproximem para que prontamente se tornem a abrir e reiniciem a brincadeira de capturar seu olhar mantendo-os presos a si, pelo maior tempo que conseguirem? Estarão eles jogando entre si, apostando em suas habilidades para reter seus visitantes-moscas colados em seu poder de aderir olhares curiosos? Como será que anda este escore do placar da captura?

Recém-chegados de nossos lares-abrigos-cativeiro, olhamos para aqueles rostos humanos que nos olham ou se deixam ver, colocados numa distância entre si bem menor que os recomendados um metro e meio, e sentimos saudades, e, talvez, uma pitada de inveja, quando a esperança de um tempo no qual isso voltará a poder acontecer se transforma em niilismo do nunca mais.

De volta ao lar, misto de aconchego e cativeiro, enquanto escrevo este pequeno texto, registrando as impressões desta rápida saída, descubro que estive frente a uma sala dedicada a retratos e autorretratos de artistas. Não eram pessoas comuns os retratados, eram os próprios artistas. E se apresentavam, como consta do apurado trabalho educativo no cartaz Exercício de me ver, como “artistas homens (que) assumem posições diversas: intelectual, pensador, atormentado, boêmio, rebelde e até uma face diabólica… de Ismael Nery”. E o cartaz, completa sua missão de educar, ainda destacando as posições das representações das artistas mulheres e dos artistas negros. Tudo nos conformes das pautas que modelam nossas percepções, e direcionam um certo recorte de consciência que se quer crítica, incluindo-nos no que nosso tempo suporta recomendar.

E, finalizo com esta figura, em sua brancura plastificada, eternamente congelada, diante do espelho, no pé da parede, espaço que lhe coube? O que dizer desta autoidolatria solitária, que não por acaso, dá as costas a todos que o contemplam em sua posição quase desaforada, ou apenas deselegante e descuidada com o visitante recém-chegado? Talvez ele esteja de castigo por alguma desatenção imperdoável cometida com alguém que não merecia ter sido tratado por ela de forma descuidada; e por este motivo será condenado a ser representado privado do contato visual com o próximo, em posição-denúncia escancarada de seu autocentramento narcísico!

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