Na rua do HC, na frente do Pronto Socorro, um alto-falante instalado numa torre avisa os passantes dos riscos da pandemia como o alto-falante do filme 1984 avisava o que teria que ser feito para sobreviver. A palavra parece ser essa. Estamos há um ano sobrevivendo.
Estamos vivendo tempos difíceis, onde o desconhecido e o desamparo predominam, articulados com a descontinuidade de nosso senso “dos fazeres próprios” que se reflete mais ou menos no nosso senso de ser.
A pandemia trouxe esse cenário com cores em intensidades variadas para cada um de nós, mas ninguém escapa. Além de tudo é uma situação mundial! Quem diria! Talvez possamos pensar que sua estrutura pode ser comparada ao que, em meu imaginário pelo menos, seria uma guerra mundial. Menos sangue explícito, menos Tarantino, mas mais persecutoriedade, o que me fez lembrar de George Orwell em 1984 .
As epidemias ocorreram desde sempre na história da humanidade. No mundo grego, Hipócrates chamou de epidemia doenças febris que atingiam uma população e de epidemos pessoas estranhas a uma cidade que nela entravam, e lá ficavam por algum tempo antes de dela saírem (Ujvari, 2003).
As epidemias atingem uma população a partir de seu exterior, fazendo aparecer também a percepção de um estranho que nos visita de dentro e que é por ela despertado (Freud, 1919). Esse caráter de estranheza das epidemias se manifesta a partir do desconhecimento e imprevisibilidade que elas trazem na sua essência.
Atualmente fomos surpreendidos por um vírus, SARS-CoV-2, originário da China, coincidentemente vindo do oriente como a peste referida em Decamerão de Giovanni Boccaccio, de 1348. Quase sete séculos depois nos vemos igualmente frente a um novo agente patogênico ao homem, com potencial mortífero, inclusive por sua alta contagiosidade. Além disso, apesar de possuir uma organização biológica bastante precária desafia os conhecimentos científicos do nosso tempo. Somos assim lançados no campo do medo, do desamparo e da fragilidade.
Nesse contexto, uma crise bate à nossa porta – uma crise pessoal, familiar, nacional e mundial. Podemos correlacionar o conceito de crise com o de trauma, não aquele estruturante mas aquele que nos assola sem aviso e nos desestrutura. Não podemos apenas lamentar a situação pois sem crises não há desenvolvimento.
Essa situação tem em si um potencial traumático e traz repercussões diferentes para cada um de nós na medida que se liga a nossas experiências prévias de falta e desamparo, associado a nossa condição de integrá-las e elabora-las. Deve ser discriminada dos traumas constitutivos onde a falta é necessária à constituição do sujeito, fazendo parte do desenvolvimento psíquico. Aqui falamos de uma experiência excessiva, intrusiva, que “rasga” a possibilidade de continência de cada um e que poderá ter um efeito disruptivo se não puder ser devidamente processada e elaborada. Entretanto, a instalação de uma situação traumática é complexa e vai depender do desenvolvimento psíquico de cada um, assim como das condições do ambiente, quer seja a família, a comunidade, as políticas públicas e os serviços de saúde que puderem prevenir um desenrolar desestruturante ao ajudar o indivíduo no seu processo de elaboração de perda que a situação comporta.
A complexidade da situação não para aí porque em qualquer momento a desorganização ou não decorrente da situação traumática vai depender também da presença de uma “pessoa prestativa” que possa ajudar com sua “mente funcionante” a transformar o impacto de experiências emocionais vividas sensorialmente em pensamentos significativos, através de ligações com as fantasias inconscientes que irão dar um sentido a essas experiências, sentido este que será integrado ao todo do sujeito.
Na esteira de eventos traumáticos que atingiram uma proporção mundial surgiu a PDB na década de 60 em dois continentes distintos, na Inglaterra com os trabalhos de David Malan (1963) e nos EUA com Peter Sifneos (Grove, JE, 1996). É tributária da experiência e necessidade gerada após as I e II Guerras Mundiais onde a demanda por tratamento psicológico extrapolou em muito as condições de atendimento. Também foi importante a demanda gerada por outras situações de desastres pontuais como o incêndio na Coconut Grove em Boston.
A PDB desenvolveu-se na direção de favorecer o acesso a uma parcela da população que necessita de psicoterapia para a qual pode ser delimitar uma meta a ser atingida que pode ser endereçada por uma interpretação básica e se relaciona a um conflito intrapsíquico emergente. Este se constitui no foco da psicoterapia e é atualizado na fase de término favorecendo a sua elaboração.
Em 2020 o IPq-HC-FMUSP mobilizou o Serviço de Psicoterapia para o atendimento emergencial dos profissionais de saúde do complexo hospitalar que estavam trabalhando basicamente com situações referentes à pandemia. Foi oferecida uma psicoterapia de 4 sessões com possibilidade de expansão até 10-12 sessões aos profissionais que acessaram a hotline aberta 24h para o primeiro atendimento desses profissionais.
A avaliação pós término da PDB levou à constatação de desfechos variados, desde a percepção de aspectos da vida emocional que aparecem na situação despertada pela pandemia, com ganho de interesse e curiosidade, com desejo de adentrar um processo psicoterápico, até a possibilidade de ajudar uma reorganização concreta permitindo que uma desorganização psíquica não ocorresse.
Estamos ainda sofrendo as repercussões psíquicas que a crise deflagrada pela pandemia determinou e muito ainda é demandado em termos de saúde mental nos níveis pessoal e populacional. A experiência acumulada nestes atendimentos em 4 sessões nos mostrou de forma viva que a potencialidade da PDB ultrapassa o seu uso habitual para pacientes nos quais podemos delimitar um foco de trabalho e que têm uma boa motivação para mudança, podendo ser muito útil em momentos de crise como a atual.
_____________________________
*Psicoterapia Dinâmica Breve de Orientação Analítica
_____________________________
Referências
Freud, S. (2010) O inquietante . In S. Freud, Obras Completas (P. C. Souza, Trad., Vol. 14, pp. 247-283). São Paulo: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1919).
Malan DH.(1963) The assessment of therapeutic results. In: The study of brief psychotherapy. 1.ed. London: Tavistock Publications, 43-50.
Schkolnik, F. (2005). Efectos de lo traumático en la subjetivación. Revista Uruguaya de Psicoanálisis , 100, 73-90.
Sifneos, P – Two diferente kinds of psychotherapy of short duration. In: Essential papers on short psychotherapy . Ed. James E. Grove, 1996, p. 400-436.
Ujvari, S.C. (2003). A história e suas epidemias – A convivência do homem com os microorganismos (pp. 24). São Paulo/ Rio: Senac.