Por que um curso cujo título é “A voz do usuário”?
Porque muito se fala sobre os usuários de drogas, sem que sejam consideradas nem as distinções mais básicas que a clínica nos ensina: há diferentes tipos de usos e nem todos requerem tratamento, pois não configuram um problema em si. (Reale, Carezzato, 2017)
Dar voz, encontrar a voz, ouvir a voz dos usuários torna-se imperativo! Como podemos delimitar os usos que não são patológicos se não somos capazes como clínicos de reconhecer onde e como vivem os usuários cujas formas de uso não adquirem coloridos psicopatologicamente reconhecíveis? E, quando atingem estes patamares, como eles fazem a famigerada “viagem de volta” (Galduroz & Masur, 1990) se lhes for dada essa chance? Uma significativa parcela dos dependentes acabam confinados e cooptados pelos modelos dominantes dos cenários das internações em comunidades – autodenominadas – terapêuticas (Santos, 2018; Rui e Fiore, 2021). Deles são os discursos mais conhecidos amplamente reproduzidos, dada a presença maciça do hegemônico modelo dos 12 passos, pautados originalmente em grupos de autoajuda. E nesse modelo não se faz distinção entre os diferentes tipos de uso, estabelecendo e fortalecendo os jargões que dominam o senso comum sobre as drogas: droga mata! Buscamos diminuir a distância com culturas que nascem na e da periferia, entendida como um território que originalmente localiza-se à margem, não apenas geograficamente, mas do centro do poder. A experiência de distanciamento do establishment é um ponto comum da chamada contracultura resumida no slogan “sexo, drogas & rock’n’roll” e da cultura geek, destacando os gamers e cia, onde alguns usuários podem tornar-se aditos de outros objetos que não as drogas. Inspirados em estudos das próprias (sub)culturas das drogas (Labate et al, 2008) e nas clássicas contribuições da teoria do rótulo de Howard Becker (1973) e do estudo seminal de 1978 sobre estigma de Erving Goffman (2015), vimos ao longo de décadas (Reale, 1995) buscando abrir espaço para o encontro dessa voz.
¹ Esta matéria foi baseada no texto originalmente escrito como introdução e justificativa para apresentar o curso para o Instituto Sedes Sapientiae. Agradeço a leitura e contribuições de Gabriel Rocha Teixeira Mendes para esse texto e nos preparativos para que chegássemos a viabilizar a apresentação desta proposta de curso.
Também encontraremos, nas produções culturais e artísticas, manifestações diretas da voz do usuário. A música e a dança como hip hop, rap e funk (Gimeno, 2009) jazz e rock, fornecem de uma forma viva e vibrante como as vozes dos usuários gritam sua situação para uma sociedade que os ignora ou persegue.
No encontro do cinema com a literatura, partimos do emblemático filme Naked Lunch de Cronemberg (1991), cujo roteiro (Felix, Ponte, & Durão, 2011) foi baseado no livro de mesmo nome de William Burroughs (Harris, 2003; Oliveira, 2023). Com a filmografia de Cronemberg (Lobo, 2016) também fica introduzido aqui um autor cujo gênero transita entre horror film ou body horror. Realizador do filme Crimes do Futuro (2022), ele aborda de maneira perturbadora a body art, tema que foi arrolado como uma face sombria que radicaliza a manipulação do corpo própria, do universo amplo das tatuagens. Essa face nos remete ao fascínio produzido pelo horror, como é discutido no primoroso ensaio psicanalítico de Kristeva ((1982), O poder do horror, ensaio sobre a abjeção.
As culturas tradicionais, sobretudo quando assimiladas e repaginadas em ambientes urbanos (Nhanderu, 2023; Ribeiro, 2019), mostram-nos a criatividade e busca de formas de minimizar as rupturas com muitas de nossas raízes que os grandes centros urbanos – megalópoles como São Paulo – historicamente forjaram e aprofundaram ao longo dos séculos de sua existência. Como fênices transmutadas, fazem brotar do asfalto beberagens e pós extraídos de plantas e raízes que antes permaneciam como práticas exclusivamente recônditas dos povos das florestas.
Por outro lado, sabemos que desde a infância a procura por alterações da consciência, mesmo que mínimas, habita o universo lúdico infantil. E essas vias lúdicas sem uma participação direta de substâncias psicoativas, imbricam-se com os jogos configurados para nos transportar para a realidade virtual, promover encontros e amizades, num ambiente onde a imersão estende a experiência temporal e espacial para outras dimensões.
Ao gosto de roteiro e citações em filmes gênero fantasia ou sci-fi, experimentos com câmaras de privação sensorial, por exemplo, apontam para tecnologias que reúnem o sonho da expansão das fronteiras da vida humana para além de nosso planeta, lado a lado com a expansão da consciência para além do uso comum que fazemos dela na vida cotidiana.
Não podemos ignorar que os relatos de nossos casos clínicos dão voz aos usuários cujos usos ganharam matizes compulsivas (Reale, 2023). E uma vez instaladas as compulsões, os usuários enfrentam uma amplificação de problemas por se tornarem incapazes de perderem a capacidade de escolher quando, quanto e como usar sua droga de eleição.
E tal como vimos fazendo há vários anos, dentro de uma perspectiva interdisciplinar continuamos a privilegiar o olhar psicanalítico, seguindo nossa forma de pensar e praticar a clínica, em cursos e nos seminários clínicos da série A clínica em tempos de fim de Guerra às Drogas, organizados pelo O Barato no Divã desde 2011. Este novo curso aposta na ampliação de nosso olhar clínico pela elucidação e encontro com forças sociais e culturais que também nos condicionam.
Bibliografia
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