Clínica em Contexto: novo curso d’O Barato no Divã

Seguindo com o principal princípio que norteia o programa formativo que vimos desenvolvendo e expandindo n’O Barato no Divã, propusemos um novo curso para compor o segmento de Cursos de Expansão do Instituto Sedes Sapientiae. Procuramos abranger um espectro amplo de temas de maneira a cobrir um igualmente amplo perfil de alunos interessados, mantendo como foco principal a oferta de recursos para enfrentar os desafios que a clínica de AD coloca aos iniciantes. O foco será colocado na interdependência da clínica com o seu contexto, e as distintas cenas de uso. As aulas se encadeiam de maneira a contribuir para a construção de um olhar pautado na transdisciplinaridade, ainda que se paute inicialmente na psicanálise.
 
A clínica de AD é atravessada pela contingência de carregar – principalmente no caso das drogas ilícitas – a condição dupla de tratar de algo que pode ser enquadrado como doença e crime. Esta mesma clínica de AD desloca o profissional da experiência comum de poder usufruir, em todos os períodos do tratamento, do conforto de manter seu foco principalmente na experiencia psíquica [ou emocional] do paciente. Nesta clínica, a experiência específica nos ensina que enriquecemos nosso approach quando nos tornamos capazes de ter uma escuta informada frente às situações trazidas pelos pacientes envolvendo os contextos em que os usos e as drogas ganham sua significação social relevante.
 
Os usos de maior risco e seus contextos
 
Os acontecimentos que acompanham a desmedida marca do estilo de vida dos toxicômanos [Olievenstein, 1985] experimentada em distintos contextos de uso da droga imprimem efeitos que tencionam e modulam os efeitos da droga em si, carregando consigo riscos e consequências para a vida dos usuários. A capacidade para reconhecer e estabelecer quais são os limites do aceitável ou não destes riscos se desenvolve com a experiência.
 
O conhecimento das vicissitudes que comumente acompanham os diferentes contextos e cenas de uso (Domanico, 2006) fornece informações preciosas que contribuem como moduladores para o estabelecimento e manejo dos riscos associados aos usos.  
 
Vejam o caso de mulheres que usam álcool em situação solitária no ambiente doméstico. A situação daquelas que desenvolvem um padrão de uso abusivo ou dependente trazem para o clínico desafios que diferem muito daqueles trazidos pelos dependentes – muitos dos quais homens – que, por exemplo, inicialmente circunscrevem seu abuso a situação de happy hour com colegas de trabalho. 
 
Da mesma forma o uso de crack a céu aberto – um tapa na cara da sociedade que assiste assombrada à quebra da lei – carrega em si o acúmulo dos efeitos indesejáveis do estatuto ilegal do consumo de certas substâncias, trazendo à tona os limites do que se pode fazer para conter o uso quando se está aprisionado à lógica proibicionista. As cracolândias tornam visíveis a repetição do insucesso flagrante no anseio dos políticos de acabar com a sua existência pela uso da força [Machado, 2017]. As medidas repressivas tomadas contra os usuários de crack em situação de altíssima vulnerabilidade não conseguiram fazer desaparecer a presença ostensiva deste uso-denúncia. [Gallo & Hashimoto, 2011; Kawaguti, 2013]. Tal contexto e cena de uso revelam os efeitos cumulativos de problemas e contradições que o estatuto ilegal da droga carrega, trazendo à baila questões que não são aquelas que comumente tratamos como problemas clínicos da dependência em si. A tentativa de implantar a internação compulsória é facilmente caracterizada como uma quebra de direitos humanos do cidadão. O caráter compulsório tenta contornar as recomendações clinicas de nunca fazer uso de medidas terapêuticas sem que a devida avaliação clínica e indicação justifiquem as ações; tais peculiaridades são relevantes quando se conhece e respeita parâmetros clínicos usados no tratamento da dependência da substância em si.
 
Quando examinamos o contexto de trabalho, recortando uma aproximação que enfoque os usos de álcool e drogas, este surge como fator de proteção, pois constitui um um limite organizador separando quando se pode e quando não fazer uso da substância. Mesmo quando tal limite não é respeitado, sua quebra oferece um parâmetro que informa o clínico sobre como o paciente usa –positiva ou negativamente – este potencial organizador dos ritmos da vida e do uso. A forma com que o usuário se relaciona com este limiar, ou borda, traz informações que associadas a experiência relacional com o paciente podem ajudar a formular hipóteses psicodinâmicas úteis para a condução do tratamento. 
 
Quando nos debruçamos sobre o ambiente escolar, outro marco organizador especialmente significativo na vida dos adolescentes e jovens estudantes, identificamos a privilegiada oportunidade de implementar ações que podem matizar, prevenir e reduzir riscos associados aos usos de álcool, cigarro e outras drogas. Frente as questões trazidas para a infância e adolescência pelo uso das substâncias psicoativas a principal associação que fazemos é entre escola e prevenção. Mesmo neste período da vida, a clínica especializada nas toxicomanias só se tornará indicada quando o uso extrapolar os padrões que caracterizam os usos experimental ou recreativo. 
 
Ainda refletindo sobre contextos em que jovens tendem a consumir drogas, mencionaríamos as baladas e festas eletrônicas de grande duração – chamadas raves, onde o consumo é muitas vezes tratado como intrínseco ao evento! Assim posta a coisa, o que se mostra mais efetivo é buscar ações que se desenhem dentro da perspectiva de redução de danos. Evitar os piores desfechos inspira as intervenções que tem sido adotadas pela organização de alguns deste eventos.
 
A importância dos estudos etnográficos das drogas
 
“Nos anos 80, as pesquisas etnográficas tomaram dois caminhos: o estudo do tráfico nas ruas e dos usuários de droga fora de instituição. Dentro desta última linha destaco o trabalho “Life with Heroin” de Hanson et al. (1985), cuja contribuição foi propiciar um melhor entendimento do caminho que os dependentes percorriam desde o início do uso da heroína até a procura de programas formais de tratamento. Posteriormente o foco mudou: do foco em etnicidade e cultura de usuários de drogas, para o estudos de drogas específicas. O uso de etnografia como método para identificar novas drogas foi abordado em importantes conferências, posteriormente publicadas como “Street Ethnography: Selected studies of crime and drug use in natural settings” (Weppner, 1977) “Ethnography: A research tool for policy makers in drug and alcohol fields” (Akins and Beschner, 1980).
 
Posteriormente ainda, com o surgimento da epidemia do HIV/AIDS, o foco deslocou-se para a cena do uso de drogas, permitindo que um conhecimento específico sobre a dinâmica e peculiaridades das variadas práticas e usos de apetrechos para o consumo das diferentes drogas trouxessem conhecimentos fundamentais para a prevenção da transmissão do HIV/AIDS, sobretudo entre usuários de drogas injetáveis. Tais conhecimentos permitiram a elaboração de estratégias de prevenção com orientações e fornecimentos de insumos específicos que aumentaram a eficácia na adoção de práticas mais seguras do uso.
 
Se é de praxe que o uso de estudos etnográficos fornece importantes subsídios para ações específicas, contribuindo para um melhor desenho de políticas de saúde publica, nós pudemos descobrir que não é comum que a formação clínica inclua o olhar antropológico.
 
Seguindo a tradição de nosso aprendizado com Olievenstein, decidimos fazer esta aproximação diminuindo esta lacuna na formação de nossos alunos d’O Barato. 
 
Conclusão
 
Aprendemos que a aproximação da clínica do abuso e dependência de álcool e outras drogas a partir da dimensão “contexto” pode nos oferecer a oportunidade de identificar “triggers de cura”. Com esta expressão queremos salientar que o maior desafio, principalmente nos casos de maior gravidade, é identificar o que pode desencadear uma mudança no padrão de consumo ao qual estão associados muitos dos prejuízos experimentados pelos abusadores/dependentes. Tal aproximação feita com uma rede de usuários/abusadores/dependentes de drogas – no trabalho pioneiro do PPUID, desenvolvido entre 91 e 94, sob coordenação de Diva Reale – corroborou o quanto um ajuste sensível às demandas sociais e relacionadas ao padrão de consumo pode trazer resultados sugestivos de mudança de padrão desse consumo. [KIRSCH; REALE; OSTERLING, 1995; REALE, 1997]. Reunido a outras experiências outdoor, desde o primeiro estágio em Marmottan em 1986, propusemos este curso onde esperamos poder compartilhar esta experiência de maneira a contribuir com a construção de uma escuta de nossos alunos de seus pacientes capazes de identificar e acionar “turning points” em direção à cura.
 
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DOMANICO, Andrea. “CRAQUEIROS E CRACADOS: BEM VINDO AO MUNDO DOS NÓIAS!” – Estudo sobre a implementação de estratégias de redução de danos para usuários de crack nos cinco projetos-piloto do Brasil / Tese (Doutorado) – Universidade Federal da Bahia. Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, 2006. 220 págs.
 
GALLO, J. S. & HASHIMOTO, E. A. Internação compulsória na Cracolândia, IBCCRIM JUSBRASIL. 2011. Disponível em:
 
KAWAGUTI, L. Confusão marca início da internação forçada por crack em SP, BBC Brasil. 2013. Disponível em:
 
KIRSCH, H.; REALE, D. & OSTERLING, J. Hard-To-Reach or Out-of-Reach? São Paulo Outreach Workers and Inner-city Addicts. In: KIRSCH, H. ed. Drug Lessons & Education Programs in Developing Countries. New Brunswick, Transaction Publishers, 1995. Chap. 16, p. 219-232. 
 
MACHADO, L. Seis meses após ação na Cracolândia, usuários e funcionários reclamam de precarização no atendimento, PORTAL G1. 2017. Disponível em: <https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/seis-meses-apos-acao-na-cracolandia-usuarios-e-funcionarios-reclamam-de-precarizacao-no-atendimento.ghtml>Acessado em 15 de outubro de 2018.
 
REALE, D. O caminho da redução de danos associados ao uso de drogas: do estigma à solidariedade. 1997. 216 p. Dissertação (Mestrado), Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo.

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