Introdução
Não pode haver urgência na cura da dependência: a cura da dependência se distingue do tratamento de uma emergência médica, provocada pelo uso de droga. A cura da dependência é, antes de mais nada, um assunto que envolve a relação terapêutica entre a pessoa do dependente e a pessoa de seu psiquiatra. Não foi Olieve que disse isso, assim, nestes termos; ele nos falou do momento fecundo, da melodia que emana das falas trocadas pelo paciente e seu médico. Ele restitui à fala significante a musicalidade do afeto até então pouco reconhecido pela psicanálise dominante à época.
Olieve frequentou os seminários de Lacan. O Hôpital Marmmotan, que conhecemos nos anos 80 e 90, albergava em seu corpo clínico vários psiquiatras e psicanalistas, sobretudo lacanianos. Olieve por sua vez nunca se declarou psicanalista, no entanto adota conceitos do campo analítico para pensar livremente sobre eles e elaborar uma teoria que dê inteligibilidade à clinica do toxicômano.
2009: operação limpeza
Aqui em São Paulo nunca foi mais urgente do que agora reavivar a força que emana das ideias, da obra e da pessoa de Olievenstein.
Desde final do ano de 2009, em São Paulo, a prefeitura atual re-edita uma operação-limpeza para o centro da cidade. O prefeito dá sua contribuição às medidas que vêm sendo tomadas por gestões anteriores que visavam revitalizar o centro. No momento, isto se traduz pelo afastamento de grandes contingentes de população de rua e seus aparentados – os usuários de crack – moradores de edifícios grandemente deteriorados na região de São Paulo conhecida como cracolândia.
A polícia da prefeitura é quem faz a apreensão dos meninos de rua levando-os para serviços de saúde com o propósito de obter a assinatura de um médico que autorize sua internação compulsória numa clínica conveniada fora da cidade. O embate se faz sem subterfúgios, os médicos resistem recusando-se a assinar as internações não ponderadas clinicamente, caso a caso. O resultado do embate é a ameaça de demissão de uma equipe inteira de saúde mental de crianças e adolescentes.
Após mais de 20 anos de neo-liberalismo instituído no mundo, a chamada eufemisticamente flexibilização de relações de trabalho corresponde a montagem de uma organização de serviços que funcionam em paralelo às leis antigas que protegem o trabalhador. Tornou-se mais fácil tirar da frente aqueles profissionais contratados por este regime trabalhista novo que são desobedientes. Desobedientes porque ainda acreditam dever reger sua conduta profissional pautados em preceitos clínicos estabelecidos dentro de uma ética que priorize os direitos dos seus pacientes, sejam eles crianças em situação de rua ou não.
2010: “Não há drogados felizes: Charboneau apresenta Olievenstein”
Em março de 2010 aconteceu em São Paulo o encontro “Não há drogados felizes: Charboneau apresenta Olievenstein”, no Colégio Santa Cruz. Fizemos parte da organização deste evento como membro da ABRAMD. Para abertura o palestrante convidado: um ex-presidente do país, que passou a adotar em sua agenda política o tema das drogas, e se encontrava em campanha para eleição presidência. A homenagem ao educador Charbonneau e Olievenstein juntos se justifica porque foi o primeiro que descobriu e trouxe ao Brasil pela primeira vez Olievenstein. Charbonneau foi figura influente nos anos 70, 80 em nosso meio, diretor do Colégio Santa Cruz muito atuante junto a pais e filhos, firme defensor de suas posições que o levaram a se tornar figura conhecida na mídia, passando a integrar a história da educação em nosso país.
Uma polêmica em torno do nome do evento não foi surpresa. A sensibilidade de alguns membros da associação de profissionais e estudiosos das drogas foi ferida. O nome – Não há drogados felizes – reforça o preconceito, alegam alguns inflamados opositores. Depois de algumas considerações, a comissão organizadora escolheu manter o nome, por uma questão de soberania da mesma.
A experiência impactante trazida pela leitura do Il n’y a pas des drogués heureux é reeditada 26 anos após. A releitura de trechos do livro impressiona pela força pulsante da melodia das histórias dos inúmeros pacientes toxicômanos que habitam suas páginas; nos faz pensar neles como pessoas singulares. Suas histórias não podem se reduzir a números nem vistas apenas como casos clínicos; são pessoas que sofrem, tem suas vidas empobrecidas pela dependência de drogas, e são acolhidos numa clínica que os quer vistos separadamente dos demais pacientes psiquiátricos. Gostaríamos de poder dizer que Marmmotan nasce do reconhecimento de parte da sociedade francesa de que os drogados mereciam ser menos infelizes. E esta parte se materializou nesta iniciativa que Olieve protagonizou desde este primeiro momento.
No nosso encontro aqui em São Paulo e a emoção do reencontro dos ex-estagiários de Marmmottan acordou memórias. Pela figura de Bernard Géraud, psicanalista aposentado na mesma ocasião que Olieve, torna-se presente o indômito espírito da pioneira Marmmotan: com forte apelo humanitário, sectária defensora do empossamento livre da vida sem drogas que o toxicômano em busca da cura se propõe a trilhar. A outra convidada, Zorka Domic, presentifica o espírito marmoteano de acolhimento da diferença levado ao seu limite; Zorka trouxe para Marmottan sua multiculturalidade. Nascida na Bolívia, filha de pais sérvios Zorka foi acolhida por Olieve tornando-se a primeira latino-americana a integrar a equipe terapêutica. Depois dela muitos outros vieram, inclusive brasileiros; alguns não só como estagiários, mas como membros estáveis da equipe.
Já os outros dois convidados trazem para o encontro o elemento novo: José Outeiral, psiquiatra e psicanalista, trabalhando com adolescentes, organizador e autor de uma vasta gama de publicações que promulgam o pensamento de Winnicott em nosso país. Neste encontro, Outeiral representou a voz do não especialista em drogas. Adolescência e drogas configuram uma delicada e perigosa relação. O diálogo com ele permitiu que nas discussões fossem depurados pelos ouvidos mais afinados os jargões e bordões que exsudam da fala dos especialistas quando estes permanecem só falando entre si.
A voz do psicanalista do grupo do meio criou a oportunidade para pensarmos de forma mais arejada; também foi possível rastrear uma das influências da origem do pensamento de Olievenstein. Ele mencionou como lhe foi importante a leitura da obra de Winnicott , O Brincar e a Realidade, em que se deparou com o conceito de objeto transicional. Mais do que integrar conceitualmente este conceito – do objeto transicional – em sua teorização própria Olieve trouxe para a clínica institucional a presença marcante da transicionalidade. O modelo de cura francês, como Olievenstein se referia à rede formada pelas instituições envolvidas no tratamento do toxicômano, certamente reproduz qualidades transicionais. Assim podemos resumir que o toxicômano, na trajetória de sua cura, estabelecerá diversas relações de caráter terapêutico.
No atendimento de tipo ambulatorial em Marmmotan, decidir-se-ão nas entrevistas preliminares quando e se a internação será necessária; ela terá de fazer sentido, como parte de um projeto terapêutico que será estabelecido conjuntamente partindo de um trabalho analítico com a fala do paciente, fazendo surgir da queixa e pedido de ajuda concretos uma demanda. A partida por um serviço de pós-cura – fora de Paris, espalhado pelo país será decidida conjuntamente após a avaliação de quanto de recurso o paciente dispõe para [re]estruturar sua vida fora do circuito da droga. Por um lado, pondera-se como seu grau de escolaridade e profissionalização prévios o habilitam a fazer face ao seu envolvimento com o mundo das drogas; a transgressão – indissociável ao uso de uma droga ilícita -aprofundou-se até onde. Houve roubos, tráfico? Sua relação atual com o sistema repressivo afetará negativamente sua chance de recuperação? Cumpriu pena ou é foragido? Perguntas difíceis, pois parte das respostas irão se constituir em restrições ao projeto terapêutico, pois sua base de ação será reduzida ou ameaçada pela dívida que foi contraída com a sociedade.
O anonimato, voluntariado e gratuidade do sistema de tratamento francês garantem uma relativa independência entre o sistema curativo e o repressivo. O acerto das contas contraídas pela dependência de drogas poderá ser feito tendo na figura do próprio devedor – o toxicômano – a autoria e desenho da sua forma. Quando e como, isto é, através de quais meios o drogado quitará suas dívidas será um assunto seu, fruto de quão longe no processo da cura ele conseguir chegar.
A recuperação de um futuro em que os sonhos possam voltar a ser sonhados e restituir um movimento do sujeito em uma direção minimamente planejada poderão ser uma descrição da trajetória da cura. Saber que este movimento não será linear, mas helicoidal (espiral) ajuda a suportar os movimentos de afastamento nos quais perdemos de vista nosso paciente por um período imprevisível de tempo. Do mesmo modo, ajuda a lembrar que poderemos também tê-lo de volta num outro momento quando a retomada do caminho da cura se fizer possível novamente.
Eu, que já tinha já experimentado este movimento de fuga dos meus pacientes tratados por mim num hospital psiquiátrico paulistano, descobri em 1986 – dois anos depois de ter iniciado minhas atividades clínicas com dependentes de drogas – que a questão da baixa adesão permanecia a mesma em Marmmottan. Esta descoberta fez aguçar minha curiosidade científica pela questão da adesão. Desde esta primeira ida à Marmmottan/Paris passei a desejar poder descobrir justamente o que acontecia com eles – os usuários e dependentes de drogas – longe de nós, justamente quando estavam fazendo este movimento de afastamento do aparato curativo. Assim nasceu a ideia do que viria ser o PPUID, entre 1991 e 1994. Mas esta é outra história.