Nunca há um documento da cultura que não seja, ao mesmo tempo,
um documento da barbárie.
W. Benjamin
O que retiramos para nossos fins imediatos, das afirmações precedentes,
é que não há perspectiva de poder abolir as tendências agressivas do ser humano.
S. Freud
As cartas trocadas entre Freud e Einstein¹ são perturbadoras em vários sentidos. Provocado por Einstein, coube a Freud responder a seguinte questão: “Por que a guerra?”. Esperava-se das maiores referências intelectuais da época uma resposta mais ou menos convincente sobre as razões da Guerra e, mais do que isso, alguma luz sobre os caminhos que possam levar à resolução definitiva do estado de barbárie (estado de exceção) desde sempre enraizado no seio da civilização ocidental. A resposta de Freud, ao mesmo tempo em que atende a primeira expectativa de explicação – “Por que a guerra?” –, e para tanto lança mão da teoria das pulsões proveniente do campo de investigação psicanalítico, confere à segunda – “O que fazer…” –, certo pessimismo no que diz respeito à instauração de um poder superior com funções de regulação e mitigação dos conflitos resultantes das diferenças irredutíveis entre povos e indivíduos. Para Freud, a irredutibilidade do conflito é a fonte permanente tanto de um mal-estar que atua de forma explícita ou furtiva sobre a vida psíquica do sujeito, gerando adoecimento, quanto do estado de guerra que se torna um operador relevante e permanente no conjunto das relações entre grupos e estados.
Diz Freud a Einstein:
Nós supomos que os instintos humanos são de dois tipos apenas: os que tendem a conservar e unir – nós os chamamos eróticos, exatamente no sentido de Eros, no Banquete de Platão – e os que procuram destruir e matar, que reunimos sob o nome de instinto de agressão ou destruição. Como vê, isso é apenas uma transfiguração teórica da conhecida oposição entre amor e ódio, que talvez tenha um nexo primordial com a universalmente conhecida polaridade de atração e repulsa, que desempenha relevante papel em sua área de estudo. (2010, 426)
Esta passagem da carta de Freud endereçada a Einstein nos ajuda a entender a presença incontornável de um mal-estar na cultura, assim como a (im)possibilidade de se pensar um arranjo político capaz de resolver – definitivamente – problemas como o da guerra entre indivíduos, grupos e nações. Antes de tudo, é preciso reconhecer a presença do conflito e de seu caráter incontornável na existência humana não só como condição de possibilidade do saber psicanalítico, mas enquanto pressuposto ontológico. A descentralização do sujeito operada pela psicanálise é a resultante de um olhar (escuta!) atento às fraturas da subjetividade… Nesse sentido, a perspectiva freudiana é uma aposta na dimensão constitutiva do conflito em seus diferentes níveis, seja na vida do sujeito, seja no âmbito maior da organização cultural.
A resposta de Freud não poderia não levar em conta essa espécie de fratura ou defasagem instaurada no âmbito da existência humana. Em seu nível mais elementar, o da vida psíquica, a teoria das pulsões – representada pela dualidade pulsional entre Eros e Thanatos – corresponde à tentativa de dar conta da dinâmica que atravessa os corpos e organiza a relação destes com o mundo exterior e entre si. Alguma Coisa, que é da ordem do indizível, in-forme, “O que será?”, perturba um estado inorgânico e dispara (im-pulsiona) a vida… E o “aparelho psíquico”, esta que é talvez a maior ficção teórica freudiana, organiza-se em arranjos os mais complexos, podendo ser pensado a partir dos pontos de vista tópico, econômico e dinâmico. O “aparelho” faz sentido em resposta àquilo que permanentemente dispara a vida, a Pulsão.
Enfim, se Freud enxerga na “evolução cultural” a possibilidade de um trabalho permanente contra a guerra (“tudo o que promove a evolução cultural também trabalha contra a guerra”), em sua carta endereçada a Einstein está claro, vale repetir, a ideia de uma impossibilidade de resolução do conflito pulsional via aquisição de objetos, valores e bens culturais. Ao apontar a relação limiar entre o direito e a violência, Freud está em consonância com os pensadores da Escola de Frankfurt, que duvidaram da razão e denunciaram seu poder de destruição. O pressuposto de um enlace entre as pulsões, o “amálgama” que sustenta o dualismo pulsional de sua teoria, se constitui, ainda, como um dispositivo crítico em permanente vigilância contra qualquer forma de tirania travestida de elevação cultural.
Se o senhor me acompanhar ainda um pouco mais, eu lhe direi que os atos humanos também trazem uma complicação de outra espécie. Raramente uma ação é obra de um único impulso instintual, que em si já deve ser composto de Eros e destruição. […] …quando os homens são incitados à guerra, neles há toda uma série de motivos a responder afirmativamente, nobres e baixos, alguns abertamente declarados, outros silenciados. […] O prazer na agressão e na destruição é certamente um deles; as inúmeras crueldades que vemos na história e na vida cotidiana confirmam sua existência e sua força. A mescla desses impulsos destrutivos com outros, eróticos e ideais, facilita naturalmente sua satisfação. Às vezes temos a impressão, ao saber de atos cruéis acontecidos na história, de que os motivos ideais só teriam servido como pretextos para os apetites destrutivos; outras vezes, no caso das atrocidades da Santa Inquisição, por exemplo, achamos que os motivos ideais se impuseram à consciência, enquanto os destrutivos lhes trouxeram um reforço consciente. As duas coisas são possíveis. (2010, p. 427-428)
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¹ Publicadas em Paris, em 1933, em inglês, francês e alemão simultaneamente, um projeto realizado sob a orientação do Comitê Permanente para a Literatura e as Artes da Liga das Nações e patrocínio do Instituto Internacional de Cooperação Intelectual (Liga das Nações), que promoveu a troca de cartas entre intelectuais de renome sobre assuntos de interesse da Liga das Nações. Sua circulação foi proibida na Alemanha.