Mais Estranho que a Ficção

Uma estranha conexão surge entre um homem e uma voz feminina cuja natureza e origem impulsiona Harold Crick, o homem em questão, a iniciar um périplo em busca da resposta a esse enigma. Se o desconforto inicial se dá pelo fato de só ele escutar a dita voz, posteriormente descobrimos um motivo ainda mais forte para sua preocupação: a voz anuncia que sua morte está sendo esperada.   
 
O encontro com o psicoterapeuta de colorido libertário, meio contracultura, não levou a nada. Afinal, ter sua voz – entendida como um sintoma – objeto de uma atitude compreensiva não serviu para elucidar nem a origem nem a natureza da voz.     
 
A segunda profissional visitada – uma psiquiatra feita pela humorista Linda Hunt – oferece uma magistral cena onde interpreta a bitola a que se vê confinado o profissional quando está no momento de fazer o diagnóstico. Tal como ele é praticado hoje em dia, o ato de diagnosticar não leva em conta as nuances psicopatológicas que as gerações precedentes de psiquiatras utilizavam para afinar seu diagnóstico. Ainda menos comum é encontrar psiquiatras que mantenham uma formação e postura psicodinâmica na hora de avaliar o paciente. A psiquiatra conclui tratar-se de esquizofrenia – diagnóstico previsível, compatível com o que conhecemos da psiquiatra estadunidense – e daí para frente não há como incluir nenhum outro aspecto ou relativizar o diagnóstico-veredito.  
 
Harold não se dá por vencido. Questiona a doutora até que consegue extrair dela uma valiosa ideia: “se não for está doença, como eu poderia descobrir se aquilo que a voz fala vai mesmo acontecer?” pergunta Harold. E a psiquiatra se mostra ser capaz de raciocinar dentro do campo hipotético proposto por Harold: “Então… para isso eu procuraria um professor de literatura!”. 
 
E assim foi. Harold chega com sua história e obtém ajuda do professor Jules de Harvard. Propõe que juntos eles tentem descobrir pela análise da trama qual o gênero literário da narrativa; ele indica haver duas opções: ou é uma comedia ou uma tragédia. A descoberta do nome da escritora traz um baque: ela é uma renomada autora de romances trágicos em que os personagens centrais sempre morrem. Sua esperança de descobrir usando as fórmulas linguístico-estilísticas próprias para definir os estilos contrastantes não adiantava mais. Esta autora nunca havia escrito um livro de comédia!  
 
Sua luta pela vida exigiu uma outra via: encontrar a escritora e pedir compaixão pela sua vida.  
 
Até este momento só o personagem sabe da existência desta conexão com a autora-narradora. Curiosamente há uma curiosa inversão de onisciência cabendo ao personagem lutar por e tentar definir o destino que lhe é reservado. A escritora por sua vez ao desconhecer a conexão entre eles parece estar sendo conduzida pelo personagem, cuja história deste ponto de vista só aparentemente ela cria. 
 
Neste momento um flashback parece se impor, se quisermos avançar nesta investigação junto com Harold. 
 
Descobrimos ao longo do filme que Harold era uma pessoa com severas restrições afetivas, tendo uma vida relacional muito pobre. Carregando sintomas de ordem obsessiva-ritualística e seguindo uma vida quase ascética, sua vida parece não empolgar quem dele se aproxima. Acontece uma reviravolta em sua vida quando ele conhece uma garota, por força do seu trabalho de auditor da Receita Federal. A garota tem uma forma de ser e estilo de vida quase antípoda ao dele: romântica, desorganizada, movida pelo afeto, dá à sua vida uma direção apostando no sucesso dos sabores que ela cria em sua doceria. Ao se conhecerem, ela inicialmente o rejeita; e ele, sem se dar conta acaba se envolvendo com ela.  
 
Por sua vez, descobrimos desde o começo do filme que algo não vai bem na escrita do livro atual da escritora. Os prazos de entrega estão sendo perdidos, e a editora resolve mandar à casa da escritora Kay Eiffel, interpretada pela magnífica Emma Thompson, uma coach de escritores. Esta coach, também interpretada de forma impecável por Queen Latifah, entra em cena toda vez que um escritor desta editora esteja vivendo um período de bloqueio. Enquanto a coach, vai oferecendo sua presença encorajadora, vamos descobrindo que Kay está padecendo para encontrar uma ideia de como poderia conceber mais uma morte, de maneira que a solução letal para Harold fosse um desfecho que soasse literariamente interessante. 
 
Ela está muito atormentada, fuma compulsivamente, não se alimenta, coloca-se em situações mórbidas e arriscadas condizentes com a pesquisa-laboratório sobre possíveis formas e causas de morte. A razão de seu bloqueio ainda está fora de sua consciência, mas já está acessível a nós que assistimos ao filme. O valor da vida humana que ela engenhosamente destrói sistematicamente em seus livros está sendo colocado em cena, pelo suspense angustiado que vive Harold ao tentar descobrir o que lhe está sendo reservado. A tensão que experimentamos ao passar a torcer pela vida de Harold parece explodir quando Kay descobre a conexão com ele, um “homem de verdade”.  
 
Este é do meu ponto de vista – aquele de uma psicanalista – o nó córdio da história narrada.  
 
O bloqueio da escritora parece indicar que a situação enigmática que movia seu processo de escrita para a repetição – seus personagens sempre devem morrer – pode ser lido como um sintoma. Sintoma cuja repetição está prestes a se romper pois desta vez, graças ao bloqueio, emerge à consciência o problema dos “assassinatos” de seus personagens, acompanhado de angústia pela vida do seu personagem-agora-pessoa.  
 
É o bloqueio e a angústia pela morte que emergem diante da descoberta de que seu personagem é um homem de verdade que constitui o suspense, em uma dimensão de metalinguagem. Harold vai ou não morrer? E aqui se situa o interesse pelo segundo encontro: entre os campos da literatura/ficção e psicanálise. A relação entre o processo criativo e o inconsciente ficam implicitamente revelados: desejo, eros-vida, amor, ligação-saúde são colocados frente a frente com destrutividade, morte, desligamento-processo patológico. Se a repetição das mortes passa a ser vista como um sintoma isso parece acontecer porque a cisão entre personagem-pessoa, literatura-vida começa a ceder. O bloqueio é o anúncio da crise: não é mais possível à Kay alimentar sua vida exclusivamente pela via do trabalho como escritora. Descobrimos que ela é uma pessoa reclusa, quase nunca aceitava conceder entrevistas, notória por recusar sistematicamente falar com jornalistas. Por Harold, ela vai procurar conselho com Jules, o professor e crítico literário que conhecia seus livros.  
 
A tensão está atingindo seu ápice na vida de Kay e de Harold. Em paralelo, num plano tratado como sendo a realidade consensual, está se constituindo um problema cuja solução acarretará, necessariamente uma perda: ou perde a literatura ou perde Harold. 
 
A engenhosa solução escolhida como desenlace da trama trará à tona uma tese implícita, tal como acreditamos existir no roteiro, segundo a leitura que fizemos da personagem de Kay. Qualquer que fosse o desfecho escolhido certamente haveria insatisfeitos adeptos da outra alternativa possível.  
 
O filme merece ser visto, não apenas para conferir a solução dada ao suspense construído. Se oferecesse minha opinião estaria conduzindo uma pista. Prefiro terminar convidando o leitor a apreciar por si próprio os pequenos detalhes saborosos que trazem à tona de forma viva o que procurei esboçar com linhas gerais sobre este filme.  
 
Será este um filme sobre uma historinha romântica originalmente contada, ou uma épica e grandiosa tragédia anunciada? 

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