Escrita em 43’:31”. Leitura em 6’:06”
Na série “La Casa de Papel” a inteligência tem uma relação invertida com a violência. Mas isso não basta para delinear as linhas de força do argumento. Dois ingredientes mais: a coragem e a engenhosidade complementam a fórmula. Com isso as situações podem ser resolvidas sem que se precise fazer uso da violência, é o que nos faz acreditar o Professor.
A lei está lá não exatamente para ser cumprida. Ela é conhecida profundamente porque oferece parâmetros claros do custo que cobra quando não é cumprida. Ela não serve como medida nem do que é certo, nem do justo, nem do bom.
A ética que rege os ideais dos personagens é a da obediência pela razão e discernimento, da solidariedade, do respeito à vida humana desde que isso seja possível. Todos os esforços para preservar a vida são considerados. Não qualquer vida, mas uma que possa ser usufruída.
Sobrevivência e amor não caminham juntos, mas servem como parâmetros que instituem linhas de força que movem ou desafiam os personagens a manejar seus valores na direção da melhor solução com o custo mínimo.
O custo é medido pela preservação, ou intenção de preservar, a integridade física, quiçá psíquica. No entanto, os personagens parecem ter mais dificuldade, ainda que variável entre eles, para reconhecer em que consiste a injúria psíquica. Afinal, eles estão colocados desde o começo da narrativa numa situação de poder desafiante, movidos por situações de vida deprivadas.
Cada um busca na grande ação engenhosa e transgressiva reparar alguma perda ou insuficiência em suas vidas sentida como inaceitável.
O amor nesta situação é uma trampa. Não se pode confiar nos sentidos e nos afetos que brotam das relações entre os adversários – sequestradores e reféns. Esta deformação, tal como nos ensina a ciência, impede que as relações sejam legitimas e verdadeiras. Elas são fruto do efeito da violência estrutural, ou melhor, conjuntural à situação de sequestro – nem sempre claramente percebida, ou reconhecida, por aqueles que supostamente estão no comando. Na verdade, o grau de lucidez e consciência oscila entre os personagens. E oscila também conforme o tempo passa, pois as tensões crescentes atingem grandes ápices de agudização, entremeadas por pequenos momentos de esperança e alegria.
Personagens apresentados como mais limitados avaliam mal a situação. A eles correspondem graus maiores de alienação, atribuída a falta de inteligência, ou falta de acesso ou apreço pela cultura e conhecimento. Neste sentido, o ideal de atributos que auferem o máximo poder é concentrado no detentor do máximo conhecimento, inteligência e controle correlato.
Falamos do Professor, personagem que carrega atributos que beiram o paradoxal. Apresentado como alguém que na sua privacidade experimenta a vida por meio de extrema sensibilidade, é também alguém apresentado como tendo imensa aversão à violência. Sendo mesmo incapaz de uma altercação agressiva direta com o outro.
A tese da trama: a antítese da violência é a inteligência, movida pela extrema coragem, e modulada pela engenhosidade; trata-se de uma inteligência que se mede na concepção, no pensamento estratégico e na capacidade de uma esmerada, precisa e ágil execução.
A plasticidade, agilidade e força do corpo estão a serviço do engano do outro que se coloca como obstáculo ao objetivo geral e suas pequenas etapas; os objetivos específicos articulados numa ordem flexível e ajustável ao longo do encadeamento dos acontecimentos evoluem no tempo.
O que é necessário conseguir: o máximo de tempo. A máxima que define o capitalismo “Time is money” é tomada ao pé da letra. Quanto mais tempo é ganho, maior quantidade de notas de dinheiro é impresso, maior a recompensa pelos riscos e sacrifícios realizados.
Ninguém será roubado, não se tirará nada de ninguém; só o que lhes tirado é algum tempo emprestado. Inclusive poder-se-á comprar de alguns… mas isso não será aqui esmiuçado para que não se estraguem os suspenses que constituem a habilidade para… não apenas roubar o tempo do espectador, mas que se pretende oferecer-lhe algo mais em troca, que não seja somente o entretenimento. É preciso oferecer-lhe a ilusão de que algo lhe é acrescentado, um conhecimento que fará diferença ao final do tempo emprestado.
Alinhada ao propósito do criador ou diretor da série, e da equipe que lhe deu existência, esta crítica se encerra, devolvendo o tempo do leitor e deixando que ele decida o final: algum fruto a mais foi colhido por este tempo doado à série?
E à leitura desta crítica?