J.L. Borges e a tragédia da duração infinita

“nada do que foi uma vez ouvido
 
pode repetir-se com as mesmas palavras” 
Plínio, Naturalis historia
Em “Funes, o memorioso”, um dos contos mais conhecidos do argentino Jorge Luis Borges, o escritor nos apresenta um personagem bastante curioso. Trata-se de Ireneo Funes, um jovem que viveu até os 21 anos, condenado desde os 19, após um acidente de cavalo em que ficou paralítico, a se lembrar de cada ínfimo detalhe: “antes daquela tarde chuvosa em que o azulego o derrubou, ele havia sido o que são todos os cristãos: um cego, um surdo, um aturdido, um desmemoriado.” Todas as impressões dos sentidos, assim como qualquer sensação, sonhos, histórias, todos os encontros, data e hora precisa dos dias ele lembrava:
“Sabia as formas das nuvens austrais do amanhecer do dia 30 de abril de 1882 e podia compará-las na lembrança com os veios de um livro em papel espanhol que ele havia olhado uma única vez e com as linhas de espuma que um remo levantou no rio Negro na véspera da Batalha de Quebracho.”
A despeito de possuir uma capacidade de memória que o diferenciava de todos os outros homens, Ireneo Funes vivia isolado, imóvel e insone, mergulhado na penumbra de um quarto escuro. Certa noite, ele disse ao narrador do conto: “Eu sozinho tenho mais lembranças que terão tido todos os homens desde que o mundo é mundo. E também: Meu sonho é como a vigília de vocês. E ainda, por volta do amanhecer: Minha memória, senhor, é como um monte de lixo” (2007, p. 105). Incapaz de se esquecer, a vida de Funes se resumia à catalogação e ordenação (inútil) das dobras infinitas de um mundo vivido cada vez mais estendido, para sempre capturado na trama de uma “memória infalível”.
Não há qualquer possibilidade de simbolização neste mergulho na vivência concreta, um presente “intolerável de tão rico e tão nítido”:
“Este [o vertiginoso mundo de Funes] não o podemos esquecer, era quase incapaz de ideias gerais, platônicas. Não só lhe custava compreender que o símbolo genérico cachorro abrangesse tantos indivíduos díspares de diversos tamanhos e diversa forma; incomodava-o que o cachorro das três horas e quatorze minutos (visto de perfil) tivesse o mesmo nome que o cachorro das três e quinze (visto de frente). Seu próprio rosto no espelho, suas próprias mãos, surpreendiam-no a cada vez.”
A investigação da memória – entendida enquanto série diferencial dos registros ideativos dos estímulos que incidem sobre o aparelho psíquico – esteve desde sempre presente no centro das preocupações teóricas de Freud. O modo como a vivência (seja oriunda de fonte endógena, seja exógena) e sua expressão adquirem representabilidade psíquica, assim como a qualidade das representações e a intensidade dos afetos a elas associados estão no cerne da explicação do funcionamento do aparelho freudiano. Na Carta 52, de 1896, endereçada a Wilhelm Fliess, Freud diz o seguinte sobre o que poderíamos chamar de “aparelho de memória”:
“Querido Wilhelm, 
 
Como você sabe, estou trabalhando com a hipótese de que nosso mecanismo psíquico tenha-se formado por um processo de estratificação sucessiva, pois de tempos em tempos o material presente sob a forma de traços mnêmicos experimenta um reordenamento segundo novos nexos, uma retranscrição. Assim, o que há de essencialmente novo em minha teoria é a tese de que a memória não preexiste de maneira simples, mas múltipla, está registrada em diversas variedades de signos. Há algum tempo atrás (Sobre a concepção das Afasias) postulei a existência de uma espécie semelhante de reordenamento com respeito às vias que chegam a partir da periferia. Não sei quantas dessas retranscrições existem. Pelo menos três, provavelmente mais.” 
Os modos de inscrição/retranscrição apontados por Freud na Carta 52 ganham inteligibilidade a partir da compreensão do funcionamento dos sistemas Pcs-Cs e Ics, assim como do trânsito que se estabelece entre eles. Desde um ponto de vista tópico, cada sistema traduz um traço originariamente percebido enquanto “signo de percepção”. De acordo com Freud, “esta é a primeira inscrição das percepções, totalmente inacessível à consciência e articulada segundo uma associação por simultaneidade.” (1996, p. 288) As outras transcrições deste traço originário estabelecem formas distintas de articulação e associação, em cuja sucessão acabam por se vincular às representações-palavra próprias do sistema Pcs. A memória, nesse sentido, longe de ser a reprodução fiel de um traço originário (“a memória não preexiste de maneira simples”), resultaria de uma série de mudanças correspondentes aos diversos modos como cada sistema traduz uma dada representação (“está registrada em diversas variedades de signos”).
A estranheza de Funes se daria, entre outras coisas, por sua capacidade de confundir as funções de percepção e inscrição de traços duradouros. O personagem que acumula indefinidamente os traços percebidos nos faz pensar (e estremecer!) diante da possibilidade de um aparelho permanentemente excitado em sua função perceptiva, incapaz de recolher seu investimento do mundo externo (cronicamente insone, diz Funes: “Meu sonho é como a vigília de vocês”) em direção a uma vida interior qualificada. Funes não pode sonhar e, portanto, não pode alucinar e atribuir um “sentido de realidade” subjetivo ao mundo objetivamente percebido. Na Carta 52, Freud se refere à “ativação alucinatória das representações-palavra” como um atributo de uma “consciência-pensar” posterior, retardada (porque alucinada) no tempo. Uma descontinuidade na função de percepção que estaria, para Freud, “na origem da ideia de tempo”.
Paradoxalmente, em termos psicanalíticos a figura literária de Ireneo Funes está aquém da memória. Incapaz de pensamento, simbolização e alucinação via palavra, o personagem padece de uma soberania da inscrição (dos signos de percepção), uma espécie de percepção congelada, sem a experiência de uma temporalidade intrínseca à matéria da lembrança, deslocamento ou condensação, atributos inerentes à dinâmica da memória (e à estrutura da linguagem). Impossível pensar um aparelho psíquico (em Sobre a concepção das Afasias, trata-se de um “aparelho de linguagem”) que não realize o movimento (temporal) apropriado aos processos de inscrição/retranscrição dos traços de memória. Preso para sempre no instante idêntico da apreensão do mundo, Funes não promove o movimento de diferenciação que é próprio do lembrar, segundo o funcionamento do aparelho freudiano. Em seu comentário à Carta 52, Garcia-Roza diz: “Antes de qualquer tentativa de repetição do idêntico, o que ocorre é uma repetição diferencial. A memória não se acrescenta à vida para mantê-la. Repetição e diferença já estão presentes desde o começo.” Num dos poucos encontros que tiveram, horas depois do narrador emprestar para Funes seu exemplar da Naturalis historia de Plínio, juntamente com um dicionário, pois Funes não conhecia o latim, ele escuta da estranha figura uma citação do primeiro parágrafo do capítulo XXIV do livro sétimo, cujo assunto é a memória: “ut nihil non iisdem verbis redderetur auditum” (“nada do que foi uma vez ouvido pode repetir-se com as mesmas palavras”). Não poderia ser mais estranho tais palavras na boca daquele que tudo ouvia, via e escutava, e tudo lembrava.

 

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