Habemus Papam

“Que eu mude não é estranho”

João Paulo Ayub¹ 
 
O sacrifício religioso e o colapso da subjetividade
 
“Eu não, senhor. Eu não.” “E agora, o que faço?” “Não posso fazer isso!” “Não consigo fazer isso!” “Mamãe, socorro!” “Minha cabeça está cheia. É como se eu tivesse uma espécie de sinusite psicológica.” Algumas das falas dos personagens do filme Habemus Papam (Nanni Moretti) merecem destaque por sua força de expressão sintomática. A narrativa cinematográfica que acompanha o ritual de escolha do novo Papa e a aflição dos primeiros dias vivida pelo escolhido coloca em cena um movimento que vai do sacrifício religioso ao colapso da subjetividade. Neste quadro tragicômico montado pelo diretor e ator italiano Nanni Moretti duas perspectivas de análise se complementam: aquela que ilustra em traços cômicos a produção da subjetividade no âmbito do topo da hierarquia da Igreja Católica; e a face trágica retratada a partir da vivência interior de um personagem (o Papa eleito) incapaz de levar a termo ou mesmo conferir representabilidade mínima à renúncia de sua satisfação pulsional.
 
Da paralisia à escolha: a ética e o sujeito da psicanálise 
 
A angústia vivida pelo Papa escolhido traduz, em linhas gerais, um movimento que vai do colapso ao renascimento, da paralisia à escolha, da crise da subjetividade religiosa a um novo modo de subjetivação. Duas cenas marcantes delimitam o intervalo em que o personagem se transforma: o momento inicial e tão aguardado de apresentação aos fieis do novo Papa no púlpito da Basílica de São Pedro, onde a angústia desemboca numa crise que paralisa o pontífice e impede a sua aparição; e o retorno do Papa dias depois ao mesmo lugar da primeira crise, desta vez para anunciar uma escolha difícil de ser sustentada, sua renúncia ao cargo, cuja implicação principal é o caminho inevitável que marca o encontro com o próprio desejo.
 
“Que eu mude não é estranho”
 
Jacques Lacan é tido como aquele que problematizou o caráter ético da psicanálise em detrimento de uma visão procedimentalista, eminentemente técnica e anônima de sua prática. Essa aposta tem implicações profundas no interior da compreensão do fazer analítico, principalmente se levarmos em conta que a dimensão ética, ao contrário da moral – que diz respeito à esfera dos códigos e leis universais –, consiste na busca e reflexão dos fundamentos da ação a partir de uma perspectiva que singulariza o sujeito. Tal singularidade baseia-se na ideia de radicalização do desejo (“não ceder do seu desejo”)² , tornando a ética da psicanálise algo inevitavelmente trágico. Vale lembrar o exemplo da tragédia grega, no qual Antígona, contrariando as leis da cidade, corre o risco de morrer ao enterrar o irmão. Em Habemus Papam percebemos que o vazio constitutivo do sujeito não pode ser tamponado por qualquer tipo de crença ou fé religiosa, mas tão somente reafirmado em sua dimensão negativa e faltante.
 
Numa das mais belas cenas do filme, a música cantada por Mercedes Sosa (“Todo Cambia”) confere um colorido diferente à atmosfera restritiva da Igreja. Um dos guardas, convocado para disfarçar a ausência do Papa desaparecido, substituindo-o no quarto isolado dos demais, realiza o que nunca havia sido permitido a ninguém ali: a entrega aos prazeres da comida e da música. Sem querer, esse “estranho duplo”³ do pontífice acaba sendo uma espécie de disparador da dinâmica afetiva do lugar. Os versos cantados por Mercedes Sosa atravessam as paredes da Igreja e alcançam os cardeais, que juntos dançam e cantam: 
 
“Cambia lo superficial
Cambia también lo profundo
Cambia el modo de pensar
Cambia todo en este mundo
 
Cambia el clima con los años
Cambia el pastor su rebaño
Y así como todo cambia
Que yo cambie no es extraño”
 
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¹- Psicanalista, Dr. em Ciências Sociais.
²- LACAN, Jacques; QUINET, Antonio; MILLER, Jacques-Alain. O seminário, livro 7: a ética da psicanálise, 1959-1960. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1997.
³- Segundo a fórmula freudiana, o “estranho” (Das Unheimliche, também traduzido por O inquietante e O infamiliar) é a expressão de algo oculto que vem à tona, o retorno do recalcado, do “que uma vez foi doméstico, o que há muito é familiar”. A figura do duplo, vale notar a partir do texto de Freud, é também um dos casos de expressão d`o estranho. FREUD, Sigmund. O Infamiliar: seguido de O homem da areia. Tradução de Romero Freitas, Pedro Heliodoro Tavares. Belo Horizonte: Autêntica, 2019.

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