Primeira aproximação da clínica de dependentes de drogas ilícitas.
Série história/memórias
GREF[1] um breve relato: onde tudo começou
Diva Reale
Ainda no primeiro ano da Residência recebi um convite para dar uma aula sobre Toxicomania a alunos de 5º ano da Medicina, o que fizemos com mais dois colegas residentes[2]. Empolgados com o que descobrimos estudando para esta aula decidimos ampliar nosso contato com este tema e fundamos em 1982 o Grupo de Estudos de Farmacodependência [GREF], primeiro grupo voltado ao estudo e atendimento clínico de pacientes com problemas de abuso e dependência de drogas ilícitas, do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.
Para que no futuro pudéssemos implantar um atendimento em grupo, inspirados no bordão “sem desejo nem memória”, buscamos na leitura conjunta do “Experiências com grupos”, a sustentação teórico-clínica para esta primeira aventura terapêutica. Tivemos um grande aprendizado, com a sustentação da condução deste grupo de jovens drogados[3], mais além, ou muito aquém do que aprendemos com Bion.
[1] GREFE: grupo de estudos sobre farmacodependência, fundado por 3 residentes de 1º ano, da Residência em Psiquiatria do Hospital das Clínicas de São Paulo, em 1982: Ariel Bogochvol, Diva Reale e Luiza Helena Vilas Boas.
[3] Este termo à época não tinha adquirido um caráter pejorativo.
Caindo em todas as armadilhas comuns às dinâmicas grupais de grupos formados com pacientes por um tipo de diagnóstico principal, aprendemos na raça as regras envolvendo do’s e dont’s quanto ao uso de drogas e sua relação com a sessão do grupo, necessárias para assegurar minimamente uma coerência terapêutica para o grupo de nossos pacientes dependentes de drogas.
Já tínhamos o entendimento desde este começo que nosso maior desafio na clínica da dependência seria diagnosticar com apuro as comorbidades que modificavam substancialmente a evolução e prognóstico de nossos pacientes. O diagnóstico per si da dependência a drogas, não informava suficientemente sobre quem eram nossos pacientes, nem sobre quais seriam e como evoluiriam as vicissitudes sintomatológicas da clínica de cada um deles. O que modificava e trazia desafios de porte distintos na evolução do tratamento de nossos pacientes vinha no bojo justamente, daquilo que identificávamos como sendo a comorbidade do caso. E as formas mais preocupantes advinham daquilo que à época chamávamos de transtorno de personalidade, diagnóstico de eixo II, do DSM-IV. Os mais preocupantes, borderline e antissocial. A psicose, e o transtorno bipolar, diagnósticos eixo I, menos difíceis de serem feitos, eram mais facilmente detectáveis. O manejo clínico destes casos oferecia dificuldade variável, dependendo da gravidade do quadro de cada caso, e de outros aspectos da história de cada paciente; mas, mesmo assim, nos casos sem outras complicações tendiam a ter uma melhor evolução, visto que, via de regra, ofereciam uma resposta mais promissora ao repertório terapêutico medicamentoso de que dispúnhamos. Poder medicar e ver modificados ou minimizados sintomas preocupantes traz ao psiquiatra um certo alívio. E, naquele momento da história do desenvolvimento psicofarmacológico era possível obter respostas terapêuticas mais palpáveis para os sintomas das comorbidades como transtorno de humor ou outros quadros psicóticos não muito graves.
Já nos transtornos de personalidade geralmente o impacto positivo da medicação era, e continua sendo, de menor porte e a dimensão terapêutica dependia de acreditarmos na possibilidade de obter alguma mudança psíquica, importante o suficiente para eventualmente diminuir a manutenção da rigidez sintomática, que é o que acompanha este diagnóstico chamado de transtorno de personalidade. Nutrir uma esperança clínica deste tipo, significava de certa forma fazer uma aposta numa direção contrária daquela que o próprio diagnóstico apontava. Estudos de epidemiologia clínica que incluíam diagnósticos de eixo II apontavam para a não obtenção de mudanças significativas nos sintomas que constituíam estes diagnósticos! Lançar mão de outros saberes e práticas – como aqueles derivados da própria psicanálise – e tentar instituir as terapêuticas que melhor se adaptassem às limitações do trabalho institucional, visava aumentar em alguma medida a chance de sucesso terapêutico.
Fim da parte I.
Preview: na parte II traremos a chegada de Winnicott nos estudos do GREF