GREF ¹ um breve relato: onde tudo começou. Parte II

Série história/memórias

Ao buscar ampliar as práticas que pudessem apurar nosso atendimento das formas mais intrincadas de apresentação clínica dos abusos e dependências de drogas, decidimos começar a estudar precocemente um dos aspectos mais controversos e desafiadores desta clínica: a questão das múltiplas facetas e recortes conceituais envolvendo o termo antissocial. Foi assim que introduzimos o estudo do livro Privação e Delinquência de Winnicott, na sequência do livro de Olievenstein Não há drogados felizes. Encontramos muita abertura na direção que buscávamos encontrar na posição contracorrente de Winnicott quando ele fez a descrição do que viria a ser conhecido como tendência antissocial. E isto, já estávamos fazendo naqueles anos pioneiros do início dos anos 80, ainda sem muita clareza de como estávamos transgredindo e rompendo com uma certa tradição. A proximidade que a psiquiatria ainda mantinha com a perspectiva psicodinâmica tornava a percepção de que as buscas inquietas destes psiquiatras-residentes ainda mantinham uma certa continuidade com o grande campo da psiquiatria. Primeiro buscávamos detectar os transtornos de personalidade; de maneira a não subestimar a importância de um conjunto de sintomas que afetavam seriamente a vida do portador daquela condição; em seguida era preciso desacreditar parcialmente deste diagnóstico ao apostar na cura ao menos parcial dos problemas elencados que poderiam ser associados a este diagnóstico.

De forma isolada a leitura de Winnicott deslocou o caráter excessivamente pessimista, intrinsicamente fechado e pejorativo como eram vistos os pacientes que preenchiam critérios para o diagnóstico de transtorno de personalidade. Com ele tivéramos contato com o conceito de tendência antissocial na infância, e a diferenciação diagnóstica desta tendência daquilo que seria a delinquência, instalada posteriormente. Embora houvesse esta diferenciação inspiradora e completamente original muitos de nossos pacientes adultos jovens já tinham uma longa trajetória existencial, com histórico de atos antissociais de severidade variável. Os problemas que precisávamos enfrentar clinicamente com nossos pacientes adultos não eram contemplados de forma direta pelas formulações de Winnicott; mesmo assim a semente de seu pensamento original, serviu para pavimentar um caminho para uma clínica com mais esperança. 

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GREFE¹: grupo de estudos sobre farmacodependência, fundado por 3 residentes de 1º ano, da Residência em Psiquiatria do Hospital das Clínicas de São Paulo, em 1982: Ariel Bogochvol, Diva Reale e Luiza Helena Vilas Boas. 

 A questão da relação do antissocial – que deve ser devidamente distinguido em comportamento, ato, traço ou personalidade – e o uso de drogas ilícitas, não pode ser bem discutido se não se levar em conta o efeito do estatuto ilegal de determinadas drogas que a história do proibicionismo revela (Carneiro, 2018). Reduzir o gesto de experimentação ou uso de uma droga ilícita como algo primeiramente antissocial, e como um problema em si, desconhece alguns aspectos cuja discussão crítica aprimora a abordagem clínica. Primeiro que entre adolescentes e jovens a busca pelo proibido, por aquilo que carrega uma excitação adicional à exploração do desconhecido, além de ser relativamente comum, não indica necessariamente algo a ser aproximado de qualquer tendência antissocial ou característica psicopatológica.
Um segundo aspecto advém do conhecimento da existência de determinantes sociais e culturais cujos estudos antropológicos das subculturas de usuários de drogas específicas (MacRae, Simões, 2004) são capazes de trazer à luz para tonificar o conjunto de saberes e inspirar práticas terapêuticas mais acuradas. A partir da perspectiva que estes estudos adotam reconhecemos que existem práticas comuns de trocas muito mais ligadas a um tipo de solidariedade grupal do que por interesses comerciais propriamente ditos. Portanto é preciso investigar o sentido que o uso ou mesmo as trocas entre usuários de pequenas quantidades da droga adquire. Além disso ao avaliar um paciente usuário dependente, é preciso lembrar e investigar na anamnese quais e como se instituíram seus rituais de consumo, bem como qual é o seu pertencimento subculturas ou grupos de usuários de drogas específicas, lembrando também que se deve levar em consideração o quanto estes usuários são ou não incluídos em setores socialmente integrados (MacRae, Simões, 2016; Veríssimo, 2016].
Para poder instituir esta forma interdisciplinar de cuidar de nossos pacientes tínhamos de fazer uma dupla operação, uma de validação e outra de invalidação parcial dos diagnósticos psiquiátricos que continuávamos aprendendo.
Este duplo movimento implicava primeiro em reconhecer a tradição que se constitui na construção de um determinado campo de conhecimento e práticas correlatas, como o da psiquiatria pautada no modelo médico, hoje hegemônico. Este era um primeiro movimento necessário. Estabelecer uma ruptura com este mesmo campo tornou-se necessário. Por quê? A reprodução fiel dos aprendizados circunscritos a este campo médico hegemônico foi mostrando um efeito clínico indesejável: para certos diagnósticos, principalmente aqueles relacionados aos chamados transtornos de personalidade, produzia um efeito de fechamento excessivo do prognóstico. Entendo hoje que este movimento de ruptura trouxe uma vantagem ética; vantagem na medida em que parecia poder ser possível vislumbrar uma ampliação do campo existencial de inclusão e de conquista de autonomia para estes pacientes. Para isto acontecer e não incorrermos em enrijecer nossas posturas neste campo inaugurado, devíamos ser capazes de manter uma postura de apaixonamento e distanciamento, aceitando que estas eventuais inovações, fruto destas transgressões epistêmicas que eventualmente cometemos, precisariam ser expostas e passarem pela provação de poderem ser debatidas e investigadas pelos pares diretos e pelo conjunto de profissionais que haviam se disposto a se dedicar seriamente a ampliar nosso campo de atuação clínica. 
Enquanto um grupo de estudos, ligado diretamente a uma instituição médica, nos deparamos com um problema: estas abordagens não circunscritas ao modelo médico tradicionalmente usado nas pesquisas epidemiológicas, geravam um produto ou sumo de aprendizado que quase não encontrava espaço nas revistas de psiquiatria mais almejadas do ponto de vista editorial. Éramos meros residentes de psiquiatria dando seus primeiros passos, e, alguns de nós, já tínhamos a determinação e convicção de que a psicanálise seria o complemento formativo imprescindível. Sem que conseguíssemos publicar os trabalhos clínicos, enquanto grupo tínhamos pouca chance de sobreviver de forma independente naquela instituição. E isso veio de fato a acontecer ao cabo de cinco anos de existência solo: o GREF foi assimilado ao GREA, seguindo um movimento geral desta subespecialidade clínica que hoje denominamos ‘álcool e outras drogas’: reunir num mesmo grupo o estudo, pesquisa e tratamento de pacientes com diagnósticos associados ao conjunto de substâncias psicoativas, lícitas ou ilícitas. E com esta assimilação também minguaram neste novoo IPQ, as práticas clínicas psicodinâmicas e interdisciplinares, tal como havíamos instituído no GREF, nestes seus cinco anos de existência solo.
O desejo de manter-se independente do mainstreaming, exigiu uma busca de espaço para instituir novos projetos. Como médica psiquiatra concursada do estado, no Ambulatório de saúde mental da Lapa, a partir de 1985, pude reunir condições para criar elaborar e implantar em 1991 o PPUID, Projeto Prevenção ao Uso Indevido de Drogas e Aids (PPUID-Aids/ERSA-2, 91-94), gestado desde 1989.
Sendo uma história feita de rupturas, descontinuidade e retomadas em novos contextos e com novos formatos, poder ser contada e veiculada em distintos contextos e veículos. A elucidação, ao menos parcial de como o pensamento clínico axial presente no Barato no divã foi sendo formado, encontrou um apoio inicial na narrativa desta história (Reale, 2021).

Referências
Carneiro, H. A história do proibicionismo. São Paulo, Autonomia libertária, 2018.
MacRae, E; Simões, J. A. A subcultura da maconha, seus valores e rituais entre setores socialmente integrados. In: MacRae, E; Alves, W.C. (orgs). Fumo de Angola: canabis, racismo, resistência cultural e espiritualidade. Salvador, EDUFBA, 2016. p. 261-274.
Reale, D. Estudo de caso: O Barato no divã, relato de uma experiência. Trabalho apresentado no Seminário Educação, do VIIIº Congresso Internacional da ABRAMD. Por uma Política de drogas Democrática, Inclusiva e Diversa, Recife/online (regime híbrido), 12/11/2021 (versão online).

Veríssimo, M. Do maconheiro ao canabier: os autocultivos, domésticos, e outras domesticações. In: MacRae, E; Alves, W.C. (orgs). Fumo de Angola: canabis, racismo, resistência cultural e espiritualidade. Salvador, EDUFBA, 2016. p. 275-295.

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