Caminhante, não há caminho, o caminho se faz ao andar: a clínica viva de Olievenstein
“Em 1971, Claude Olievenstein fundou o Centre Médical Marmottan (Hôpital Marmottan), instituição francesa inovadora no tratamento de toxicomania e adições. O processo de escrita deste livro passou pelas mãos de quem acompanhou de perto os passos de Olievenstein, conhecendo Marmottan e suas práticas¹. Tendo por fio condutor as possíveis contribuições da psicanálise para a clínica da toxicomania, encontramos, na obra, ferramentas para analisar as políticas de drogas e refletir sobre os diversos modos de tratamento.
A leitura deste livro revela um pensamento clínico pulsante, em que transmissão e saber são atravessados pela experiência. Nesse inquietante encontro, nos deparamos com interrogações que se desdobram em novas produções. Assim, ganhou forma o livro do qual tenho o prazer de resenhar. A originalidade de Olievenstein está no seu pensamento vivo que traz uma reflexão permanente, buscando sempre uma escuta sensível para a liberdade, autonomia e independência dos usuários. Frente a isso, o livro nos conduz a um exercício constante de pensar e (re)pensar em proposições teóricas e métodos de tratamento diante de novos contextos sociais.
Apesar da estreita relação das drogas com a humanidade ao longo de toda a sua história, foi somente na Modernidade que as drogas começaram a ser combatidas. A associação de toxicomania como doença, num contexto social marcado pela rigidez, buscava controlar os corpos do sujeito, dando aos usuários o lugar de objetos. Diante desse contexto, ao desmontar a lógica panóptica de vigilância – que se dá pelo abuso de poder, respaldado pelo saber médico – Marmottan se configurou como um modelo de resistência.
Se voltarmos aos anos 1980, o tratamento de toxicômanos no Brasil acontecia, justamente, em comunidades terapêuticas, permeadas por modelos de vigilância e moralidade, comumente compreendendo as adições na sua condição de desvio. Durante essa época, o pensamento de Olievenstein avançava em inúmeras instituições na França, defendendo a liberdade e tornando o paciente sujeito do seu tratamento, opondo-se, consequentemente, ao modelo opressivo anglo-saxão. Diva Reale e Marcelo Soares, psicanalistas e organizadores do presente livro, mostram que o então chamado modelo de cura francês também adentrou no Brasil, influenciando a criação de centros de referência entre 1984 e 1994, que contaram com profissionais treinados em Marmottan. Não por coincidência, Olievenstein fez, ao longo dessa década, viagens frequentes ao Brasil, período no qual escreveu e publicou inúmeras obras, dentre elas, um livro abordando as relações sociais e a psicanálise na cidade de São Paulo. Mas, afinal, quem foi Olievenstein?
Claude Olievenstein fugiu ainda menino da Alemanha nazista. Judeu nascido em Berlim em 1933, encontrou em Paris o seu refúgio. Na Segunda Guerra Mundial, inúmeros familiares morreram nos campos de concentração e extermínio. O passado talvez o tenha aproximado intimamente das experiências avassaladoras de quem perde as suas raízes, seus laços familiares e se torna estrangeiro na sua própria morada. Aqui, são muitos os sentidos de exílio e, com isso, vida e obra se tornam indissociáveis.
Frente a isso, Olievenstein trouxe para a clínica das toxicomanias uma visão muito particular de quem sofreu na pele os efeitos de políticas simplistas, reducionistas e totalitárias que caminham lado a lado com abordagens mais repressivas e autoritárias. Como mostra Carlos Parada, psiquiatra radicado na França (1987) que foi pioneiro na difusão dos trabalhos de Psicoterapia Institucional no Brasil: “Olievenstein era extremamente avesso a tudo que tolhe a liberdade de pensamento, de escolha e de circulação” (p.93).
Marmottan, l’enfant terrible, é bem filho de seu tempo. Nasceu da força dos protestos de 1968 e das reformas no setor educacional que também tiveram aderência da classe operária, seguidos imediatamente por artistas e intelectuais. A instituição foi criada para receber, sobretudo, usuários de heroína. O caminho de Marmottan foi feito por uma história de lutas e negociações diante de pressões e represálias do sistema: “O modelo de cura francês, construído no rastro do movimento antipsiquiátrico, adotou uma clínica psicodinâmica própria, igualmente marginal, e resistiu às incursões ‘pragmáticas’, identificadas à perspectiva de redução de danos” (p.77), como comenta Diva Reale.”
Trecho da resenha de Fernanda Fazzio publicada pela Revista Percurso (64) do livro de Diva Reale e Marcelo Soares da Cruz (orgs ), Toxicomania e adições: a clínica viva de Olievenstein, São Paulo, Benjamin Editorial, 2019.
Para acessar a resenha completa veja o site da Revista Percurso.
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¹ Os autores e entrevistados no livro foram: Ana Cecília Villela Guihon, Antonio Nery Filho, Auro Danny Lescher, Carlos Parada, Decio Gurfinkel, Diva Reale, Graziela A. Bedoian, Marcelo Soares da Cruz, Maria Teresa Vergara Gouveia, Mario Blaise e Zorka Domié.
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