Estranho espelho: entre sem olhar para trás

Como nos mostra Drummond, há mistério nas palavras: “Chega mais perto e contempla as palavras. Cada uma tem mil faces secretas sob a face neutra e te pergunta, sem interesse pela resposta, pobre ou terrível, que lhe deres: Trouxeste a chave?” Sobre o olhar da Psicanálise, Freud também investiga os segredos do significado do termo alemão unheimlich, buscando chaves para os efeitos de estranhamento.
É no outono de 1919 que Sigmund Freud (1856-1939) escreve o enigmático “O Estranho”, texto em que discute os sentimentos de horror e espanto gerados pela angústia diante do retorno do recalcado. A etimologia do termo já instiga curiosidade, convergindo desejo e angústia em um só tempo. Na língua alemã, unheimlich é o oposto de heimlich, cujo significado é familiar, íntimo, secreto. Seguindo a lógica, unheimlich deveria ser definido como estranho, desconhecido e não habitual. Contudo, tais significados não dão conta da palavra. Determinado, Freud recorre aos dicionários anotando as versões de unheimlich nas línguas grega, latina, inglesa, francesa e espanhola. E é justamente nesses estudos comparativos que o pai da Psicanálise encontra sinônimos e correlatos que despertam ainda mais a sua curiosidade.
Espelhos e imagens se assemelham e se distanciam, esbarrando em um nó semântico: heimlich assemelha-se ao seu antônimo unheimlich, evidenciando um espantoso paradoxo. Encontramos aí a ambivalência, já que heimlich não apenas remete àquilo que é familiar e conhecido, mas escondido, inquietantemente dissimulado.
O pesquisador Oscar Cesarotto, estudioso de psicanálise e da semiótica, articula no seu livro No Olho do Outro (1987) sentidos dos fenômenos do sinistro. Assim, a sensação do estranho toma conta do sujeito diante da incapacidade da estrutura repressora de manter oculta as formações inconscientes que, por vezes, vazam por vias distorcidas. Em suas estratégias críticas, Freud compartilha algumas vivências pessoais para se tornarem objeto de reflexões acerca da concepção da noção de unheimlich. O autor relata, assim, duas viagens particulares de Freud que tentam apreender a aparição do Unheimlich.
O primeiro episódio se passa em uma pequena cidade italiana, onde Freud passeia pelas estreitas ruas em uma tarde de verão. Em certo instante, o pai da psicanálise se percebe adentrando em um bairro de prostituição, sendo surpreendido por mulheres que buscam chamar sua atenção nas janelas. Sem muito pensar, Freud segue rumo a uma travessa e caminha sem direção buscando se esquivar rapidamente. E qual não é a sua surpresa ao se deparar novamente no mesmo local que estava? Nesse momento, Freud é ainda mais notado, tentando escapar apavorado do lugar.
Depois de dar ainda outros rodeios pelas ruelas, acaba por reaparecer, novamente, no lugar indesejado. Unheimlich? Diante da sensação do que parece um eterno retorno, Freud tenta fugir mais uma vez e, só agora, suficientemente longe, Freud consegue se ver livre daquela artimanha do inconsciente. A psicanalista Mirian Chnaiderman em Ensaios de psicanálise e semiótica (1989) coloca o fenômeno do sinistro como a dissipação dos limites entre a fantasia e a realidade, levando aquilo que antes era considerado fantástico a aparecer para nós como algo real.
A outra situação inquietante se passa quando Freud está viajando de trem e, prestes a se deitar, percebe na sua cabine um senhor de idade, vestindo um robe de chambre e um boné. O interessante aqui é que Freud sente um enorme incômodo diante do invasor, quase solicitando que se retire por estar ocupando a sua cabine. Espantado, Freud se dá conta de que o tal invasor é ele mesmo, sua imagem refletida no espelho da toilette, cuja porta se abrira discretamente. Diante desse evento, o pai da psicanálise infere que talvez essa reação fosse consequência de receios infantis diante da suposta aparição do duplo.
Se nos casos aqui relatados, embaraçosos e estranhos, a repetição de algo que deveria permanecer oculto retornou, podemos inferir que que um arrepio sinistro e familiar está pairando no ar. No primeiro caso, prevalece o desconforto pelo desejo e eventual culpa por cair em tentação, enquanto no segundo há um conflito de imagem e identidade.
O valor do estranho incômodo se encontra na revelação daquilo que deveria ter se mantido oculto, mas que retornou, na assim denominada estranheza familiar. Freud reconhece que no unheimlich é evocado o impulso de repetição anterior e que não somos senhores da nossa própria casa. Aqui, também as contribuições do psicanalista Daniel Kuperman em Ousar Rir (2003) dão pistas sobre as aproximações do cômico com unheimlich considerando que os mesmos elementos que nos provocam estranheza podem nos fazer rir.
Diante disso, lanço a questão se o artista também esbarra em repetições de estranhezas e familiaridades. Ao se aproximar e se distanciar dos conflitos e de seus fantasmas no processo de criação, algo retorna e, talvez, como sede de elaboração. Freud bem nos lembra de que “A verdadeira fruição da obra poética provém da liberação de tensões com a nossa alma”. Não à toa, os escritores, por exemplo, repetem escolhas de palavras, um estilo de escrever e, claro, um ritmo de fluir artístico. Aproximação do Unheimlich? Penso que também pintores, ceramistas e musicistas não escapam ao enigma: Trouxeste a chave?”
 
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Bibliografia Consultada
BERTHOLD, Margot. História mundial do teatro. São Paulo: Editora Perspecitiva, 2004.
CESAROTTO, Oscar. Contos Sinistros E.T.A Hoffman/No Olho do Outro. São Paulo: Max Limonad, 1987.
CHNAIDERMAN, Mirian. Ensaios de Psicanálise e Semiótica. São Paulo: Escuta, 1989.
ECO, Umberto. História da Beleza. Rio de Janeiro: Record, 2004.
DOR, Joel. Introdução à leitura de Lacan: o inconsciente estruturado como linguagem. Porto Alegre: Artes Médicas, 1989.
ECO, Umberto. História da Feiura. Rio de Janeiro: Record, 2007.
FRAIZE-PEREIRA, João. Arte, dor. São Paulo: Ateliê Editorial, 2010.
FREUD, Sigmund (1856-1939). Obras Psicológicas de Sigmund Freud: edição standard brasileira/ Sigmund Freud; com comentários e notas de James Strachey; em colaboração com Anna Freud; assistidos por Alix Strachey e Alan Tyson; traduzido do alemão e do inglês sob a direção geral de Salomão- Rio de Janeiro: Imago, 1996.
GOFFMAN, Erving. Representação do eu na vida cotidiana. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 2008.
KUPERMAN, Daniel. Ousar rir: humor, criação e psicanálise. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
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OSTROWER, Fayga. Criatividade e Processos de Criação. Rio de Janeiro: Vozes, 1977.
PIRANDELLO, Luigi. Um, nenhum, cem mil. São Paulo: Cosacnaify, 2010.
ROSENFELD, Anatol: Cinema: arte e indústria, São Paulo: Perspectiva, 2009.
SEGAL, Hanna. Sonho, Fantasia e Arte. Rio de Janeiro: Imago, 1993.

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