Dois Papas: Uma lição de tolerância e esperança

Um filme que nos tocou profundamente. Convida a uma reflexão acerca da soberba que acomete aqueles que se se cristalizam em suas convicções.  
 
Os diálogos que eles performatizam produzem o mesmo efeito que temos quando assistimos aos desenhos de Tom e Jerry: as coisas acontecem acompanhando de perto as expectativas que vão se formando pelo desenrolar da ação imediata.  
 
O filme apresenta uma estrutura que lembrou de perto um livro argentino sobre documentário: La Scena Documental¹. A estrutura do livro faz dele uma aula magna sobre o que move fazer documentário. Ele propõe que um bom documentário produz o efeito desejado quando parte de um enigma que serve de estrela Dalva, orientando a direção a ser tomada pelo roteiro para sua decifração. Partindo desta premissa, ele narra a história do making of de um documentário de sua autoria cujo roteiro e filmagem é narrado desde a sua concepção até o filme pronto.
 
O tema deste documentário que deu margem a escrita deste livro-aula-magna é uma tentativa de reconstituição de uma conversa ocorrida entre um presidente e um general num momento de crise do governo argentino. A conversa seria responsável pela solução pacífica e de continuidade do governo eleito democraticamente frente à crise. Nenhuma documentação sobre o conteúdo desta conversa estava disponível. A história a ser narrada dependeria dos depoimentos, da arquitetura de sua narrativa e engenhosidade para obtenção da autorização para seu uso. O principal protagonista da conversa – o presidente – já havia morrido quando da concepção do filme. 
 
Os problemas que precisavam ser resolvidos para manter o balanceamento das linhas de força entre as partes viria a exigir uma grande habilidade do diretor para construir as cenas que pudessem oferecer esta solução. E ele acrescenta uma profunda e transparente discussão e autocrítica – como realizador de documentários – dos métodos e ética a serem adotados para não cair na armadilha de justificar suas escolhas com um clichê de que os fins (sempre) justificam os meios.  
 
Pergunto-me o que pode ter acontecido para que eu associasse o filme a este livro sobre documentário. Penso que pode ter sido a discussão explicitada no livro dos mecanismos de construção da narrativa cinematográfica de um diálogo que teve o poder de zelar pelo destino de uma instituição. O livro é um making of de um documentário realizado por Sergio Wolf, autor do livro. Para mim ele serviu de guia de leitura do que imagino ter sido o nó criativo – uma situação imaginária e uma enigmática – do filme de Meirelles.  
 
Dois Papas não é um documentário: é uma ficção que realiza nossos desejos. Oferece acesso a uma intimidade de figuras que confluem em si um grande poder: não só espiritual quanto político. O passado e o atual papa se encontram; o conservador reconhece no progressista a melhor solução para sua sucessão para enfrentar os problemas que redundaram numa crise para a igreja católica. Temas importantes são abordados e discutidos; posição da Igreja frente a acusação de pedofilia, praticada por alguns de seus membros; posição diante da homossexualidade, da castidade e casamento de padres.
As diferenças de posicionamento se mantêm entre eles, mas o desenvolvimento de um relacionamento efêmero, mas poderoso, inscreve os efeitos em ambos de um profundo encontro. Alguns colocarão a riqueza deste encontro numa dimensão espiritual. Outros poderão ver nele o melhor da experiência compartilhada, em que a alteridade elicia a abertura para a busca dos pontos capazes de sustentar o traçado de um caminho rumo a uma solução. Solução do problema que a sucessão trazia ao papa prestes a renunciar a seu cargo. Solução para o esvaziamento de fiéis devotos; distanciamento da Igreja de seus princípios aprisionada na armadilha da defesa de posições alcançadas; quando a política se apequena pelo apego a posições de poder imediato.
A incapacidade de admitir erros, de desenvolver-se tornando sua faceta humana visível e reafirmando sua inscrição no mundo em transformação vai sendo problematizada como fundo das conversas que se desenvolvem entre eles.  Desta forma o filme nos faz sentir que os acontecimentos realizam aquilo que vai se configurando como sendo nossos desejos.
 
O desempenho dos atores é extraordinário. O cardeal Bergoglio (Jonathan Pryce) futuro Papa Francisco, nos cativa com sua humildade e simpatia, e estreita conexão com o homem comum. Papa Bento XVI (Anthony Hopkins) se mostra humanizado, ainda que mantendo sua germanidade austera, guardando maior distância emocional e física no contato. Mas ele mostra ser capaz de vislumbrar as potencialidades que Francisco poderá agregar à Igreja, mais além dos distintos antolhos ideológicos que supostamente cerceam os pontos de vista de cada um deles.  
 
Daí podemos dizer que o filme pode ser uma realização de desejo do melhor espírito de Natal, como nascimento dos princípios cristãos. E uma mensagem de tolerância e amizade que vai mais além, colocando os interesses de fundo em destaque: continuidade e defesa da instituição para que ela se coloque a serviço da humanidade em consonância com seus princípios originários. Na linguagem cristã, isto se daria pela recuperação da conexão com Deus, voltando a ser capaz de reconhecer os sinais da presença d’Ele. Em suas conversas íntimas nos deixam conhecer como fizeram as escolhas que poderiam ampliar e radicalizar seus próprios caminhos de devoção. Tal caminho de escolha altruísta, além de colocar entre parêntesis suas vidas mundanas, assegurou que ele fosse uma cura e realinhamento de sua própria igreja.  
 
Precisamos curar nossas instituições transformando o que precisa ser transformado, criando o que precisa ser criado para substituir o que precisa se substituído. Mas para que estas mudanças sejam desenvolvimento e não destruição, é preciso ter princípios e estratégias condizentes que contemplem e celebrem a humanidade rumo a maior inclusão, reconhecimento e respeito à diferença, mantendo e compaixão e alegria encarnados, enquanto o caminho for sendo percorrido. Cena curiosa aquela na qual, no momento da despedida, Bergoglio tira Ratzinger para dançar uns passinhos de tango! 
 
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¹Wolf, S. La scena documental. Buenos Aires, Monte Hermoso ed., 2018.

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