Dente de Leite
A sinopse anuncia:
“Quando Milla (Eliza Scanlen), uma adolescente com uma séria doença, se apaixona perdidamente por um traficante de drogas, isso se torna o pior pesadelo de seus pais. Mas quando o primeiro contato de Milla com o amor lhe traz um novo desejo pela vida, as coisas ficam confusas e a moral tradicional fica abalada. Milla logo mostra a todos em sua volta como é viver como se você não tivesse nada a perder.”
Neste filme, a leveza no tratamento dado ao tema, adotando um estilo minimalista no relato da história, acompanha uma tendência do cinema contemporâneo de se ater ao mínimo de informações para tecer sua narrativa.
Uma adolescente descobre uma “doença grave”. O termo câncer não é explícito, embora a gravidade da reação ao tratamento, incluindo a perda total dos cabelos, torna evidente tratar-se de uma quimioterapia. Aos poucos descobrimos que a garota Milla vai expressando uma certa rebeldia, que se apresenta na aula de violino, que ela parece apenas conceder em fazer.
Logo no começo do filme junto com o diagnóstico descobrimos que ela acabou de conhecer um rapaz, Moses, evidentemente mais velho que ela. Esta cena traz a forma direta, descomplicada, fora de qualquer protocolo na maneira de ele entabular uma conversa com ela. Descobrimos rapidamente que ele está envolvido com o comércio de drogas, embora não se dê especial ênfase ou detalhamento sobre qual droga poderia ser. Ele traz sinais de estar malcuidado, com aparência meio suja até, e descobrimos que ele foi expulso da casa dos pais. Nesta cena, o sofrimento do rapaz é configurado pela recusa total, mas silenciosa, da mãe que, balançando negativamente a cabeça, não permite que ele entre na casa. Atrás do vidro da janela que se mantém entre eles, percebemos que a mãe parece estar casada com um segundo homem que não é o pai de Moses – ela abraça um menino pequeno com quem Moses muito sorridente tentava conversar. Ela parece só ter olhos para este garoto, provável meio-irmão de Moses, a quem ela parece querer proteger.
Descobrimos que Moses parece ser um adolescente foragido de casa – só que no caso dele – a expulsão de casa parece ser a razão para ele ter se tornado uma pessoa em situação de rua. Moses nos traz uma impressão da insustentável leveza do ser… Seu sorriso franco, sem reservas, brincalhão e irreverente tem uma força cativante. Os encontros com Milla vão ocorrendo de forma pouco planejada, e ela vai demonstrando estar meio apaixonadinha. Em um dado momento ela o convida para o baile de formatura. Ele, surpreso, aceita, numa atitude que mescla uma pitada de inibição com um grande espírito de aventura.
Ele acaba por ser apresentado aos pais, que reparam algo incomum no rapaz. O pai experimenta um certo desconforto, principalmente pelo fato de ele ser bem mais velho. O desaparecimento de alguns objetos da casa confirma o mal-estar dos pais. Moses roubou algo da casa. No entanto a alegria da filha, já careca neste momento da narrativa, inibe alguma ação mais incisiva contra Moses.
Uma pequena digressão a propósito da questão de roubo e adolescência
Um filme recente, Rainha de Copas (2019), que carrega um clima quase sombrio de tão pesado, tem uma reviravolta após o roubo de um adolescente feito na casa da família reconstituída. É o enteado da mulher, filho de seu marido que viera morar com a família por ter extrapolado a capacidade da mãe de conter suas aprontadas.
Embora a motivação e função psíquica que o roubo parece cumprir em cada uma das situações sejam bem diferentes para cada um destes personagens jovens, um ponto em comum existe no trato dado aos roubos: em nenhum deles a polícia ou a lei é acionada. As razões para o tratamento dado ao assunto ter permanecido no âmbito privado são completamente distintas. Numa delas o amor pela filha é maior que o desejo de inibir ou punir a transgressão; no outro, a razão é complexa e se imbrica com o umbigo da trama do filme.
Achei que valia a pena ressaltar este desuso, levantando a questão: será algo indicativo de que se diversificam e talvez se ampliem as formas de tratar a transgressão no âmbito das relações privadas?
Enquanto isso, no Dente de Leite…
O filme caminha para o final, a presença do rapaz, foi se tornando mais estreita e contínua com a família. Ele já está coabitando no quarto da filha. Chegamos às vésperas do baile de formatura. A alegria estampada no rosto de Milla, onde antes havia tristeza e depressão, parece justificar este novo arranjo na casa.
Deixo que o leitor se deleite em descobrir no próprio filme a forma que a sensível diretora encontra para o desenlace. Ressalto a presença desta mesma delicadeza na escolha do título do filme. A metáfora do dente de leite é trazida como um elemento da infância que perdura; às vezes de forma redundante em idades onde já era para ter ido embora. Neste caso, o infantil é tratado como algo precioso cuja despedida precisa acompanhar os tempos de cada um.