Ecos da 43ª Mostra Internacional de Cinema
Sobre O Século da Fumaça, filme de 2019, de Nicola Graux, a sinopse oficial da 43ª Mostra diz o seguinte:
“Laosan passa o tempo inteiro fumando ópio. Para sua comunidade e sua família, perdidas no coração da selva do Laos, o plantio de ópio é a única maneira de sobreviver. Mas ele também é o veneno que entorpece os homens e destrói seus desejos. Entre o trabalho pesado e risadas, entre o nada e o ópio, o documentário revela a intimidade de Pingchang, a aldeia de Laosan, no momento em que ele se vê em uma encruzilhada.”
Como apresentar este documentário sem cair numa descrição pura e simples? Dizer que um halo de subjetividade perpassa de maneira excessiva a condução da sua realização? Mas isso seria uma traição ao espírito que deu vida ao filme! Nas palavras do diretor, presente ao final da sessão na 43ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, o que permitiu que este filme pudesse ocorrer foi a profundidade e qualidade da relação que ele diretor estabeleceu com a população deste pequeno vilarejo do Laos; esta relação foi construída e estreitada ao longo de seis anos de convivência por períodos variáveis quando da sua vinda e retorno, inicialmente sem intenções de fazer este filme, mas que redundou no mesmo pelo fato de Nicola ter se tornado um cineasta e, por razões pessoais, ter-se visto tomado por um mistério a ser investigado: como alguém pode dedicar sua vida a cultivar aquilo que pode vir a matá-lo?
Com uma grande delicadeza ele teceu com os moradores deste local uma relação de confiança, a partir da sistemática eliminação de julgamentos que pudessem ferir aquilo que ele pretende provar, ainda que de forma implícita, com o produto final transformado em filme: que desta relação nascida de um impacto sobre si pela extrema pobreza que a forma de subsistência destas poucas famílias perpetua seja possível fazer um filme que se sustente.
Não consigo responder o quanto é forte ou frágil a sustentação deste filme.
Por que esta dúvida se instilou? O efeito do filme se somou ao efeito – sempre muito pregnante – da presença do próprio jovem diretor apresentado à plateia antes da sessão começar. No início ele teceu algumas palavras sobre o que seria este filme e ao final respondeu a algumas perguntas da plateia, chamadas de debate pela organização da Mostra. Quando os quinze minutos estipulados para este “debate” terminou fomos convidados a continuar a conversa no saguão, pois ainda existiam perguntas que não puderam ser respondidas.
Se o mistério-justificativa do diretor para sonhar e idealizar este filme permaneceu sem resposta, ele gerou um desejo com força suficiente para permitir juntar recursos – não explicitados nem quali nem quantitativamente falando – para realizar o filme.
Havia uma genuína e sensível presença de uma radical intenção de respeito às pessoas filmadas, cujas cenas tomadas e eleitas para compor o filme mesclavam uma crueza cuja maior exposição chocante certamente ficou por conta das múltiplas cenas do uso do ópio. Destas cenas de uso, a eleita para dar início ao filme foi a cena de um jovem fumando deitado – o que é uma imagem clássica das casas chinesas de fumadores de ópio – filmado ao lado de duas crianças pequenas que dormem ali.
Para um ocidental, exposto à cultura e culto da vida saudável, a presença em um ambiente que se assemelha a um quarto de dormir onde compartilham da mesma atmosfera esfumaçada bebês e crianças dormindo e um jovem fumando ópio… configura um impacto de insalubridade explícita.
Este impacto vai sendo elucidado à medida que o filme vai expondo a história narrada pelos próprios personagens-cidadãos das condições que possibilitaram que aquela cena viesse a existir; eles nos contam quem são e como constituíram um núcleo familiar – avô e avó paternos do rapaz fumador, sua esposa e filhos. A morte traumática, do ainda jovem, filho mais velho dos avós das crianças – uma forte presença na maior parte das cenas – introduz um elemento de dor universal naquele cenário local.
A hipersubjetividade como estilo e ponto de vista eleito para a narrativa faz contraponto com a dor excruciante da mãe que perdeu um filho, capturada naquilo que para esta resenhadora configurou a mais bela cena que transcende qualquer problema ou desbalanço que possa eventualmente ofuscar a qualidade do filme em sua totalidade.
Nesta cena a avó com o rosto parcialmente ocultado por uma mão sobre um dos olhos desfia um lamento entre lágrimas, ranho e cuspe, narrando e purgando esta dor irreparável. Este lamento dá lugar a uma entoação que cria uma sonoridade que vai aos poucos entremeando fala e canto. Um lamento sonoro de partir o coração, um improviso cuja beleza parece nascer do ato de embalar-se para minimizar a dor infinita. Se o que moveu esta mãe-avó de coração partido a criar esta cantoria é uma estetização da dor diante das câmaras ou a necessidade de criar esta cantiga para ninar um estado de dor sem consolo possível é uma pergunta que não se deveria formular, pois ninguém, nem mesmo ela poderia responder. De fato, ela está numa posição frontal à câmera, iluminada e nos deixando dar a conhecer, testemunhar e sentir com, não deixando de mostrar que sabe que lá estamos, pois não deixa de dirigir o olhar para a câmera chegando até nós.
O efeito final da cena editada foi de beleza tocante infinita. Creio que toda a perceptível sensibilidade e delicadeza naquilo que o diretor demonstrou ter e buscou enfatizar ao ressaltar mais de uma vez a importância da relação de respeito e confiança construída com estas pessoas, esteve presente no fato de elas terem se deixado filmar em situações de extrema intimidade de suas vidas. A cena do canto-lamento-choro da avó configurou o ponto alto… Se pudéssemos dizer isso de uma única cena, diria que se trata de uma cena-obra-prima.
Tal cena nos remete a uma outra mais próxima do terço final do filme onde as mulheres se reuniram e pediram a ele que queriam fazer uma conversa novamente diante da câmera. Isto ficamos sabendo pelo próprio diretor, já do lado de fora da sala de projeção, enquanto poucos de nós espectadores permaneciam lá, agora possivelmente magnetizados pelo mistério da relação do diretor com este filme montado e apresentado por um registro de tão forte hipersubjetividade.
As mulheres usam desta cena para contar como se sentiam em relação a suas vidas, dependentes de seus maridos, mesmo quando é o trabalho delas que assegura o retorno financeiro pelo cultivo da terra e plantio do ópio. Sua versão traz o desespero bruto, da experiência do sem-saída, sem a mediação entorpecida que o ópio – este o verdadeiro narcótico – impinge aos depoimentos dos homens fumadores.
Em contrapartida, a presença das crianças, marcante ao longo de todo o filme, trouxe em especial uma linha de esperança na cena entre avô e neto quando este faz uma leitura conjunta de um caderno-revista velho, em branco e preto; fica evidente tratar-se de uma cena que se repete entre eles, visto que o menino já repete e complementa as legendas que o avô vai agregando às imagens, mostrando familiaridade com elas. O evidente interesse do garotinho por este objeto-escrito nos remete a uma possível ampliação de horizontes existenciais para aquelas crianças.
A monotonia e quase universalidade do discurso do dependente – para aqueles que como esta que escreve este texto testemunha há décadas em sua clínica e estudos – se contrapõe ao eventual incremento de esperança que vislumbramos em outros discursos e performances. E isto parece ser o resultado do testemunho participativo e interesse demonstrado pelo diretor nas miseráveis existências desta família de agricultores de ópio deste pequeno vilarejo do Laos; tal testemunho pode transformar estes camponeses em personagens capazes de comover e sensibilizar plateias e cidadãos de distantes e múltiplos lugares do planeta onde o filme puder ser exibido.
Que o cinema continue a nos descortinar as sensibilidades e novos olhares que possam trazer à luz novos aspectos de velhas realidades, por mais que seus caminhos enveredem por veredas subjetivas quase secretas, é o que este filme nos faz desejar.
PS 1: O evidente desconforto frente ao que experimentei como excesso de subjetividade parece estar se dissipando com o distanciamento que a passagem do tempo foi se dando. Durante a revisão feita hoje neste texto, dia 5 de novembro, o desconforto foi ganhando contornos novos: como se a reação frente a um efeito de intoxicação por compartilhamento da mesma atmosfera viciada fosse se dissipando, como acontece com a fumaça quando arejamos um ambiente fechado. Aparentemente não apenas as crianças e mulheres, se tornaram fumadores passivos do mesmo ópio; também cineasta e equipe (não sabemos quantos estiveram presentes) parecem ter sido capturados por essa alienação do outro e de si que o entorpecimento pelo ópio é capaz de produzir. A viagem ou planète (como diziam os pacientes de Marmottan) nos retira da relação com o outro. Mergulhamos num mundo próprio – a viagem – sem que a passagem do tempo ou a presença do outro pareçam poder ser registrados. O desligamento da realidade compartilhada se reproduz no filme, agora pela escolha estética do diretor de nos apresentar esta narrativa, sem oferecer qualquer contornamento do enquadre socioeconômico, que situe o espectador diante da história da economia do ópio. O ápice desta história se dá após os anos 60 com a disseminação para a população em geral, sobretudo nos continentes europeu e norte-americano, do consumo da heroína, produto final que se obtém pelo refinamento em laboratórios ilegais da cadeia produtiva do tráfico internacional. A plateia que assistiu O Século de Fumaça, só saberá que o narcotráfico configura o 3º maior mercado mundial se já tiver ou for procurar se informar em outro lugar. O que será que este filme provoca nas pessoas, mais além do testemunho e entorpecimento compartilhado pelo mergulho na vida desta família do Laos? Outra pergunta que só a história do filme poderá um dia produzir condições para sua resposta.
PS 2: “Segundo a lenda local, o ópio seria o néctar de uma flor mágica, nascida do peito de uma mulher nobre e triste. Esta seiva permitiria às pessoas relaxar e esquecer tanto as dores quanto os amores não correspondidos – nas palavras de um personagem, ela permitiria a ‘libertação dos desejos’.” (Carmelo, 2019) ¹. Se me lembro bem esta mulher nobre da lenda se tornou triste por causa de um amor perdido. Associar o ópio a esta lenda, parece preconizar que o luto pela perda objetal se torne melancólico, um estado que se instala pela cristalização de uma perda que não mais se reconhece, mas que extrai da realidade exterior todo atrativo, encarcerando em si mesmo o sujeito da perda. Isto se faz possível pelo prazer do esquecimento da capacidade de sentir falta, a ‘libertação dos desejos’ que será ocupado exclusivamente pelo reencontro repetitivo com a droga.
¹ Trecho retirado da crítica do filme de autoria de Bruno Carmelo, do site Papo de cinema https://www.papodecinema.com.br/filmes/o-seculo-da-fumaca/, consultado em 05/11/2019).