(O texto a seguir contém revelações do enredo -spoilers-)
Border é uma história da descoberta de si. E isto acontece quando um aspecto ocultado e mal interpretado é revelado e pode permitir algum desenvolvimento em direção a aquisição de uma certa plenitude. Aquilo que pode ser chamado de natureza de seu próprio ser pode ser apropriado e apreciado.
A natureza do ser – expressão que reverbera e dialoga com o título do livro de Winnicott: A Natureza Humana. Uma natureza psíquica que não pode prescindir por completo de como a biologia – o potencial das forças instintivas – vão sendo constituídas em psiquismo singular e pessoal pela inclusão das experiências resultantes dos cuidados que a mãe – e substitutos como o pai – provêm ao bebê, humanizando-o e inscrevendo este bebê no registro e história humanos.
Este filme pode ser lido como sendo capaz de problematizar este processo de nascimento do ser humano. Ele permite pensar como determinados acontecimentos precoces, portanto afetando e deformando este registro originário, podem configurar inscrições identitárias que carregam nela qualidades de exclusão.
Tina – a personagem principal do filme – trabalha como um tipo especial de guarda de alfândega marítima. Ela recebe e observa as pessoas que chegam de barco a um lugar. Ela está lá trabalhando graças a sua habilidade incomum: ela fareja coisas que destoam. Coisas que indicam uma discrepância do aceitável; ela fareja discrepâncias daquilo que é esperado; ela está lá para detectar o que não é legal.
Descobrimos no desenrolar da trama que ela é melhor que os cães farejadores de aeroporto que foram treinados para farejar as mais diversas drogas e produtos químicos de bombas. Melhor por quê? Ela fareja emoções dissonantes; ela fareja mentiras, medo e culpa. Ela tem uma aparência marcante. O rosto tem pequenas desproporções que criam um efeito de uma ligeira estranheza, colocando-a como um tanto monstruosa.
Um dia ela encontra, no fluxo de viajantes que estão chegando, um homem com desproporções anatômicas no rosto similares às dela. Fareja algo estranho e por duas vezes ele é parado para averiguação. Na segunda vez, sem conseguir definir qual o elemento dissonante que ela farejou nele, pede ao policial parceiro que faça uma revista. O colega volta da revista constrangido e lhe aponta seu erro: “É você quem deveria tê-lo revistado, pois ele não é o que parece; tinha uma vagina lá embaixo”. Tina lhe pergunta: ela é operada? Ele: “não é o que parece”. Muito envergonhada, ela se aproxima do aparente homem barbado, desculpa-se enquanto o informa do regulamento que permitiria a ele-ela prestar queixa; afinal há uma lei que assegura às pessoas o direito de serem revistadas por guardas do mesmo sexo. Ao se desculpar, Tina nos apresenta um aguçado e radical senso ético e disciplina férrea.
O encontro seguinte ocorre já fora do ambiente de trabalho, urbano. Eles estão numa floresta. O clima é de paquera, com ele numa expressão meio divertida frente a imensa timidez dela, tornando evidente que havia algo de novo que estava sendo experienciado por ela naquele encontro. Uma aproximação vai se estabelecendo entre eles a partir de uma identidade física evidente pelas similaridades encontradas em seus corpos. Ela desajeitadamente vai se apresentando, fala de sua anomalia cromossômica e das consequências em seu corpo. Completa dizendo que isso acarreta um problema lá embaixo, enquanto aponta seu baixo ventre. Ela é infértil. Ela fala de maneira a demonstrar um constrangimento cujo ápice parece se encontrar na vergonha de não poder gerar bebês.
Esta temática “bebês e sua geração” configura uma espécie de ponto nodal de temáticas do filme que cria sentidos entrecruzados. Neste diálogo Vore retruca amenizando ou ressigificando cada aspecto que Tina descreve em si como feio, deformado ou anômalo; ele o faz de uma maneira um tanto bizarra, pois ele põe em xeque a referência que ela usa para classificar-se de forma pejorativa. Chega a falar que isso só seria verdade se ela fosse humana. O clima vai aquecendo entre eles e culmina com uma relação sexual. Deste ponto em diante do filme, Tina dá início a uma jornada de busca dos elementos de sua história que faltam para ela tomar posse de sua origem, de onde vem, quem são os seus pais, e assim poder responder à pergunta que ela se colocou na cena imediatamente após: quem – e implicitamente o que – sou eu?
Os elementos que definem as diferenças de trajetória de vida entre Vore e Tina permitem que se discuta as variações de saídas existenciais e de organização psíquica de ambos. Qual a origem dos comportamentos antissociais de Vore? Vore poderia ser lido por uma chave de psicopatologia clássica como tendo matizes delirantes, psicóticas; ele encontra nesta construção com colorido fantástico a justificativa para cometer crimes hediondos.
Justamente este aspecto tem sido usado para classificar o filme no registro de realismo fantástico. Esta foi de fato a saída encontrada pelo mexicano Guilherme Del Toro para contar uma história do horror da guerra civil e ditadura franquista na bela narrativa do seu filme de 2005, O Labirinto do Fauno. Lá o recurso do uso do olhar e da narração feita pela personagem criança ameniza o contato com a crueza explícita do horror e violência. O contrário se dá em Border, quando o aspecto policial investigativo do roteiro aprofunda este contato com o hediondo e repulsivo; como expectadores somos colocados dentro dos achados da investigação do modus operandi da quadrilha envolvida com pedofilia com bebês. Como lhe diz Vore mais a frente: “Pense bem se você quer mesmo se juntar a nós. Você tem uma vida inserida na sociedade humana; tem uma casa, uma família e um emprego”. Ele, diferentemente, vive completamente à margem. E faz parte de um bando marginal à sociedade humana que vive na região dos lagos finlandeses.
Por conta deste tratamento dado ao tema da peregrinação de Tina para decifrar quem ou o que ela é, o filme carregou para dentro de si algo que chamei de “instabilidade de gênero”. O filme recebeu diferentes classificações, indicando uma estranheza com a originalidade do roteiro e a extensão e profundidade de detalhes causadores de asco. Por exemplo, o comer coisas repulsivas, indicando aspectos bizarros de apetite é algo encontrado em crianças que costumam receber diagnóstico de alguma psicose infantil. Tina tem algo deste tipo, no entanto ela tem profunda vergonha deste comportamento, reprimindo-o ou escondendo das pessoas. Este ponto é ressaltado por Vore para justificar sua narrativa com colorido de realismo fantástico.
A repulsa certamente contribuiu para reações intensas e opostas dos espectadores que amaram ou consideraram o filme rico, e outros que consideraram o filme chato, arrastado ou hermético. A personagem de Tina – o antiglamour por excelência, sobretudo pela sua feiura – tende a não despertar nem empatia, nem simpatia.
A evolução e desenvolvimento da relação de Tina com o pai acompanha a descoberta de sua origem. Ela consegue mesmo descobrir um nome original pelo qual era chamada ao nascer: Reva; este nome, curiosamente, apresenta elementos silábicos invertidos e no feminino do nome de Vore¹.
Se outras leituras da crítica de cinema permitem tomar o filme como trazendo a temática das migrações e marginalidade a que estão sujeitos os diferentes, ele também toca em questões identitárias tão profundamente exploradas de maneira a colocar Tina como tendo de enfrentar a dúvida se ela é ou não humana.Temática ultracontemporânea já tocada numa serie sci-fi inglesa de 2019: Years and Years. Existe uma personagem adolescente isolada e estranha aos olhos dos pais que tem o anseio de tornar-se uma… transhumana; ela revela a seus pais este anseio como algo mais além de uma “mera questão de transgênero”.
Fica tentador fazer a leitura desta questão ser ou não ser, que é apresentada de forma hiperradical como situando psiquicamente Tina e Vore no limiar entre a sanidade e a psicose; entre uma vida amputada do contato com as próprias potencialidades – no caso de Tina – e a ruptura criminosa e odienta com a vida e espécie humana – no caso de Vore. Seu discurso, postura, atitudes e estilo de vida o colocam num registro delirante e marginal fora da lei. Pelos humanos -considerados inimigos por ele – só nutre ódio que operacionaliza um projeto grandioso de extinção.
A investigação de um crime hediondo envolvendo bebês traz descobertas que colocam Tina num dilema que a faz dar sua resposta à questão quem sou eu? Teve de escolher entre permitir que seu encontro sexual se expandisse para algo como amor e apego à pessoa do parceiro sexual ou afastar-se dele, para manter-se fiel a seu código ético. Este dilema a inscreve à borda daquilo que a insere num registro de inclusão identitária e humana.
A ruptura radical, encontrada em delírios que incluem ações antissociais – causando dor e morte – vai se revelando dolorosamente à Tina quando Vore conta existir uma condição de não sentir nada² – nem dor nem sofrimento –atributos compartilhados em determinadas apresentações atribuídas pelo discurso (delirante) de Vore à espécie deles: nós somos trolls.
Acontecimentos no final do filme agudizam a necessidade de Tina de ressignificar sua vida frente ao novo desafio que a vida lhe colocou. Ser ou não ser replicou-se quando ela foi arrancada de uma vida solitária e a alteridade foi profundamente compartilhada. Tina-Reva não será mais a mesma de antes. O que fará daqui para frente?
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¹Sobre este curioso aspecto na escolha de nomes de personagens remetemos o leitor à matéria sobre o filme Phoenix.
²Justamente o não sentir nada, quando se torna uma condição congelada e duradoura, Winnicott explicitamente descreve sendo uma das formas de adoecimento psíquico.