O documentário American Factory (2019) é muito mais do que um olhar sobre o embate sino-americano. Também não se limita a uma peça estratégica no jogo de disputas em torno de modelos corporativos aparentemente incompatíveis. Mais do que uma história de vencedores e vencidos no mundo de negócios capitalistas, vale a pena destacar o retrato de uma condição que atravessa irremediavelmente norte-americanos e chineses: a crise dos laços sociais e o colapso da subjetividade. Num primeiro plano, o documentário investe sobre as nuances e provocações resultantes do encontro de culturas e personagens tão distantes em termos de economia e organização psíquicas. Contudo, se atentarmos ao que realmente está em jogo nesta série de imagens, discursos e retratos apresentados pelo filme, e ousarmos uma compreensão para além da manifestação das diferenças culturais evidentes (a sedução do exótico!), talvez possamos rastrear desde uma perspectiva clínica as modalidades de sofrimento resultantes do arranjo complexo que se realiza entre as formas de subjetivação e o jogo de forças sociais que implicam na sua constante produção.
Trata-se aqui de um olhar endereçado ao solo comum que permitiu o encontro das duas culturas. Mais precisamente, pensamos nos significados e consequências para as formas de subjetivação que se produzem no contexto de uma nova ordem mundial: observamos no filme que a transformação radical dos laços sociais, no sentido de sua corrosão, provoca a crise nos modelos de identificação e formas narcísicas assentadas em bases culturais relativamente estáveis.
Pierre Dardot e Christian Laval apresentam, em seu livro intitulado “A nova razão do mundo”, a configuração de um “novo estado subjetivo”, uma “condição nova do homem… que afetaria a própria economia psíquica”, resultante de uma mudança estrutural do sujeito empreendida pelas transformações históricas:
…muitos psicanalistas dizem receber no consultório pacientes que sofrem de sintomas que revelam uma nova era do sujeito. Esse novo estado subjetivo é frequentemente referido na literatura clínica a amplas categorias, como a “era da ciência” ou o “discurso capitalista”. O fato do histórico apropriar-se do estrutural não deveria surpreender os leitores de Lacan, para quem o sujeito da psicanálise não é uma substância eterna nem uma invariante trans-histórica, mas efeitos de discursos que se inserem na história e na sociedade.
De um ponto de vista estrutural, pode-se dizer que as transformações empreendidas pela nova ordem neoliberal ultrapassam e muito a esfera propriamente econômica, impactando toda a vida dos sujeitos, sua subjetividade, assim como a gramática dos laços que organizam e dão sentido às formações psíquicas. O neoliberalismo, entre várias outras de suas características fundamentais, é um regime marcado pela colonização da esfera política pela lógica do mercado. Assim, observa-se o que alguns nomeiam como “o fim da política”: um estado de desregulamentação do Estado e dissolução das garantias sociais conquistadas ao longo de lutas históricas que se deram em torno de ideais coletivos. A lógica administrativa invade e solapa os espaços de atuação política: na Indústria Americana enxergamos o fracasso da organização sindical e a ação disruptiva de agentes pagos para dissolver os anseios associativos dos trabalhadores da fábrica.
As consequências da assunção da lógica administrativa para a produção da subjetividade não são menos impactantes do ponto de vista do insulamento do sujeito neoliberal. O “sujeito empresa” (ou “sujeito de interesse”, segundo Foucault) opera em torno de uma nova imagem ideal de realização narcísica, onde a moral do desempenho individual se sobrepõe à ética das relações intersubjetivas. Valores como a competitividade, os objetivos e metas individuais de maximização de resultados e a multiplicação de dispositivos de “saúde” destinados à gestão do sofrimento atuam na refundação ontológica da vida na atualidade.
A psicanálise – campo de saber que nos interessa especialmente –, orienta-se em torno dos modos pelos quais os sujeitos se constituem – e se inscrevem – no interior dos laços os mais diversos: laços do Eu com o Outro, os laços com os sentidos da vida e os laços com o próprio corpo. Essa dinâmica relacional situa o sujeito no interior de demandas de reconhecimento onde a primazia do outro (seja via identificação, imperativo de Eros, ou mesmo rivalizando com ele e o destruindo, reino de Thanatos) assume um caráter constituinte. Ora, a nova ordem neoliberal, amparada na tese antropológica do “homo economicus”, fundamento primeiro a partir do qual tudo o mais condiciona a sua existência (o que, no limite, faz da vida social mera contingência deste átomo irredutível que se caracteriza pela sua capacidade de auto suficiência e auto fundação), vem solapar exatamente os liames da vida em sociedade.¹
Por tudo isso, devemos responder (nos responsabilizar) diante do produto final deste modo de fabricação da subjetividade apresentada pelo filme. Para tanto, lançamos a questão: por que Indústria Americana? Uma tentativa de resposta poderia apontar, não tanto como resposta, mas como endereçamento de muitas outras novas questões, o que deve o individualismo e a corrosão do laço social à cultura (dos EUA) que levou às últimas consequências o ideal narcísico do sujeito? Ou então, quais serão as consequências para a organização e duração da “massa chinesa” diante de uma cada vez maior permeabilidade às modalidades de gozo introduzidas tanto pela forma-mercadoria quanto pela possibilidade de consumo (quase) ilimitada da cultura capitalista? Resistiria o amor dos chineses – amor às formas ideais da “mátria chinesa” – a esta sedução que atinge diretamente os corpos individuais, obrigando-os a gozar e a descarregar o excedente libidinal que haviam resguardado ao investimento do corpo coletivo? Perderão os chineses as suas cabeças, como os soldados que entram em pânico na ausência de controle e hierarquia nos campos de batalha? Enquanto psicanalistas, devemos questionar!
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João Paulo Ayub é Psicanalista e Dr. em Ciências Sociais.
¹ DARDOT, P.; LAVAL, C. A nova razão do mundo. Ensaio sobre a sociedade neoliberal. SP: Boitempo, 2016.