Graciliano Ramos: a palavra, entre “a gramática e a lei”

Prelúdio:
Lacan e a função criativa da palavra
“Mas há uma outra face da palavra que é revelação” (Seminário 1, Lição IV)
 
“É nessa dimensão que uma palavra se situa antes de tudo. A palavra é essencialmente o meio de ser reconhecido. Ela está aí antes de qualquer coisa que haja atrás. E, por isso, é ambivalente e absolutamente insondável. O que ela diz, será que é verdade? Será que não é verdade? É uma miragem. É essa primeira miragem que lhes assegura que estão no domínio da palavra.” (Seminário 1, Lição XIX)
 
“A palavra institui-se como tal na estrutura do mundo semântico que é o da linguagem. A palavra não tem nunca um único sentido, o termo, um único emprego. Toda palavra tem sempre um mais-além, sustenta muitas funções, envolve muitos sentidos. Atrás do que diz um discurso, há o que ele quer dizer, há ainda um outro querer-dizer, e nada será nunca esgotado…” (Seminário 1, Lição XIX)
Graciliano e as Memórias do Cárcere
Observador fino e perspicaz, Graciliano Ramos é também um exímio decodificador das mazelas sociais e do labirinto existencial no qual nos encontramos todos lançados. Coisa muito enredada, complicação inextricável: o labirinto, suas salas subterrâneas e superfícies vertiginosas, porão de navio sujo e fétido, metáfora da vida tantas vezes derrotada e afogada num mar de sofrimento psíquico.
Essa escritura é uma tarefa que exige cuidado, pois as armadilhas no caminho são muitas: o gesto preciso da decodificação carrega, de certo modo, a magia da transposição dos sentidos de um lugar para outro. A gramática responde às tramas da lei, linguagem de águas turvas, mas a vida desde sempre atravessada não se deixa apagar: na pele do texto carimbado pela ordem social cabe à palavra revelar os segredos que se escondem na sutileza de seus interstícios. Na pena do escritor alagoano, o trânsito da experiência que deságua na linguagem – linguagem da experiência – não embaralha os sentidos da passagem que resulta na experiência da linguagem. “Resolvo-me a contar, depois de muita hesitação, casos passados há dez anos.”
Para a composição de suas memórias do período em que foi preso e sequestrado pela ditadura do Estado Novo, nos anos 1936-37, Graciliano não pôde contar com os registros escritos no tempo/espaço do cárcere. Ele temia por complicações maiores com as autoridades militares: “Não resguardei os apontamentos obtidos em largos dias e meses de observação: num momento de aperto fui obrigado a atirá-los na água.”
A tonalidade da experiência vivenciada pelo escritor em seus longos dias de confinamento está de tal forma incrustada no contorno das palavras que se arriscam em dizê-la que, no fim das contas, palavra da experiência, experiência da palavra, acontecimentos separados no curso do tempo, confundem-se no movimento indistinto que revela sua profunda condição de desamparo. Decodificação alquímica que vai além da simples intenção de registro dos fatos; a palavra escrita transborda em sua precisão fugidia a vida do escritor em tempos sombrios.
“Liberdade completa ninguém desfruta: começamos oprimidos pela sintaxe e acabamos às voltas com a Delegacia de Ordem Política e Social, mas, nos estreitos limites a que nos coagem a gramática e a lei, ainda nos podemos mexer.”
Se o trecho das Memórias explicita a natureza do obstáculo, onde Graciliano compara a gramática à lei (reduzindo-as ao gesto comum da opressão), há que se levar em conta também a liberdade proporcionada pelo fato de que ainda assim “nos podemos mexer”. Como foi dito linhas atrás, há a vida que não se apaga no estreito encadeamento que irmana as regras da sintaxe e o regime de poder legal. Em poucas palavras, nos deparamos com um universo vastíssimo de significados que ilumina toda a obra do escritor. Por tudo isso, as Memórias do Cárcere ocupam o lugar que converge num mesmo ponto testemunho político e testamento literário.
Ainda nos podemos mexer
Nos “estreitos limites a que nos coagem a gramática e a lei, ainda nos podemos mexer”: o final da frase se revela um tanto enigmática e sinaliza para o que aqui se enxerga como a grande questão que anima a obra deste autor: enquanto houver linguagem, para o bem ou para o mal, “ainda nos podemos mexer”. Mas que linguagem? Certamente, não se trata do discurso dos quartéis, dos silêncios que residem atrás de cada ameaça. Um cano de ferro de uma arma prensada às costas da vítima pode “falar” a mais profunda verdade sobre a condição na qual se encontra: a pistola do soldado nas costas de Graciliano, à entrada no porão do barco Manaus, embarcação que o levou, junto a centenas de presos, da cidade do Recife ao Rio de Janeiro, revelou, de súbito, sua total precariedade, até então velada pela monótona rotina do quartel nos primeiros dias de prisão. A linguagem de que fala Graciliano, sintaxe singular, é aquela capaz de “dizer” o idioma do sujeito lançado à experiência de si mesmo, como diria Lacan, um “mais-além” da palavra.
Enfim, se quisermos acessar o idioma em que nos “fala” o escritor, devemos mergulhar em sua própria experiência de libertação: a palavra que reinscreve no texto as cores e os traços de seu universo existencial. Tal mergulho nos ajuda a enxergar mais de perto o modo como a dimensão do humano se realiza no âmbito da palavra. Entre uma infinidade de obstáculos, violências desmedidas, identificamos as leis e a gramática em que o escritor esteve enredado. Resta buscar em sua morada, sua linguagem, o momento em que seu ser transcende as amarras do texto e faz da palavra um gesto genuíno de transformação. Esse momento configura o encontro do ser com a linguagem que o constitui. Encontro em que os sentidos da existência realizam-se num modo de ser que é essencialmente palavra. Em suas Memórias, o escritor realiza a palavra que lhe restitui a capacidade de revelação, de levantar-se do golpe que intencionava suprimi-lo.
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João Paulo Ayub é Psicanalista e Dr. em Ciências Sociais.

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