Estamos iniciando uma nova turma d’O Barato no Divã, do 2º semestre deste atípico e esdrúxulo ano de 2020. Inspirada por este momento em que estamos apresentando o curso para a nova turma, decidi fazer esta matéria sobre um tema muito central à constituição do pensamento clínico que vimos desenvolvendo e transmitindo em nossos cursos e atividades.
Acreditamos que uma das características que agrega potência ao nosso pensamento clínico é ter na interdisciplinaridade seu norte. O Barato tal como é conduzido, almeja a perspectiva interdisciplinar desde a escolha das disciplinas e práticas que compõem o programa desenvolvido entre as 90 e 100 horas de estudos e aulas, distribuídas em dez aulas mensais. Na condução mensal da supervisão de casos clínicos trazidos pelos alunos e na farta apresentação de material clínico ao longo das aulas expositivo-dialogadas, ministradas pelos professores do staff e convidados, esperamos conseguir elucidar como a psicanálise se enriquece ou se fortalece quando inclui as extensões e ampliações que aumentam nossa capacidade de sustentar relações terapêuticas nas múltiplas situações e contextos clínicos, desdobramentos das inúmeras apresentações das adições e comorbidades.
Lembrei do livro Inter(in)disciplinaridade, de Antônio Augusto Lopes, um amigo homeopata, cuja carreira incluiu ter-se tornado um clínico especializado chefe da Cardiologia pediátrica e congênita do INCOR, pesquisador de área básica e professor de pós graduação da Faculdade de Medicina da USP. Ao longo de suas 226 páginas, divididas em uma apresentação e quatro capítulos, ele nos apresenta a interdisciplinaridade numa linguagem agradavelmente acessível e descontraída. Trouxemos o próprio texto do autor para apresentar sumariamente esta perspectiva epistemológica.
“Interdisciplinaridade, multidisciplinaridade e transdisciplinaridade são termos que se pretende ter significados diferentes, mas giram em torno da mesma preocupação: como construir saberes e encontrar soluções para os problemas da contemporaneidade, que emergem dentro de um cenário complexo? As soluções não estão na soma das ações, mas na orquestração de uma ação comum engendrada por múltiplos elementos imbricados. Esses elementos, por sua vez, relacionam-se de maneira tão intima, que quase chegam a perder momentaneamente as suas identidades, passando a constituir identidades hibridas. Este contínuo processo de “desidentificação-reidentificação” convoca componentes de natureza muito estranha, difícil de aprender; eles habitam as fronteiras entre as áreas, riquíssimas em tensões geradoras de existência, mas, por isso mesmo, vulneráveis aos ataques dizimadores dos conflitos desestruturantes”.
Enxerto aqui um comentário: qualquer semelhança com o conceito de objeto, espaço e fenômeno transicional não é mera coincidência. Embora confesse não saber como justificar de forma explícita teoricamente, percebo o aparentamento entre este conceito racionalmente disruptivo de Winnicott e a perspectiva da interdisciplinaridade. A força e atração exercida por esta forma de abordar problemas de saúde complexos¹ já se manifestava no aprendizado e na práxis da prevenção especializada, como atestado neste trecho:
“Acreditava-se que as educadoras desempenhavam um papel similar a embaixadoras da Saúde, embora seu trabalho se desse num espaço entre saúde e serviço social, prevenção e tratamento, clínica e educação, pesquisa e intervenção, antropologia e medicina, psiquiatria e psicanálise, mencionando alguns dos espaços entre pelos quais pensava-se estar transitando. Estava sendo criado a nossa interpretação de quais boas práticas adotar, justificadas pelas necessidades de saúde identificadas em nossos usuários.” [Reale, 1992; Cavallari, Reale, 2020].
Mas voltemos às palavras do próprio autor:
“Assim foi imaginado este texto de INTER(IN)DISCIPLINARIDADE. Ele pretende examinar a possibilidade de existência de práticas interdisciplinares em ambientes e contextos complexos, aí onde se pensava reinar ordem e harmonia somente. Como imaginar ações entre áreas que, em verdade, nunca foram e nunca serão assim “tão comportadas” em suas dinâmicas internas? Como lidar com o fato de que elas não são subordináveis entre si?
Ora, a interdisciplinaridade de que se fala não implica ações envolvendo áreas correlatas, mas instancias aparentemente muito distantes e voláteis! Com efeito, como o “capital” conversaria com o “não capital”, em seus interesses ao mesmo tempo exclusivos e interligados? Os ingredientes desse amálgama talvez ainda não sejam completamente conhecidos. Mas por enquanto e suficiente saber que os essenciais estão aí: um pouco de ingenuidade, pitadas de boa ironia, muito “jogo de cintura” e toneladas de humor! Eis a interdisciplinaridade que ora se apresenta como proposta.”
_____________________________
¹ Este trecho busca caracterizar o trabalho de educadoras de rua do Projeto de Prevenção especializada ao uso indevido de drogas, concebido e coordenado por mim.
_____________________________
Referências
Lopes, Antonio Augusto. Inter(in)disciplinaridade. São Paulo: Editora Atheneu, 2010.
Cavallari, C.D.; Reale, D. “Jogos de Identificação e seu Papel na Prevenção Especializada”, apresentado no Simpósio: “AIDS e Uso de Drogas Injetáveis”, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Agosto, 1992.