A gente tolera, mas não devia

 
Recentemente, a psicanalista Fernanda Fazzio fez um episódio do podcast Era da Pressa sobre intolerância, mostrando como é importante lidarmos com as diferenças, fortalecer os laços com o outro, reconhecer o insuportável que está em nós, e assim, fortalecer as democracias… 
 
E agora, diante dos últimos acontecimentos com o avanço devastador da COVID-19, a questão da intolerância deve ser revisitada.
 
Sensibilizada pelos acontecimento recentes e inspirada na crônica “Eu sei, mas não devia”, publicada pela autora Marina Colasanti (1937), Fernanda Fazzio escreveu o texto “A gente tolera, mas não devia”.
 
 
A gente tolera o descaso por vidas, mas não devia. A gente aceita que os números de mortes se transformem em códigos anônimos, não pessoas. E, quanto mais isso se torna comum, mas indiferentes nos tornamos. A gente se acostuma com os números de óbitos subindo disparadamente, como “se nada pudesse ser feito”. E como uma fake news facilmente vira verdade disseminada, banalizamos as mortes por essa doença que se contamina no coletivo, mas que nos deixa morrer asfixiados e completamente sozinhos.
 
A gente tolera a estupidez coletiva, mas não devia. 
Se olhar as notícias diárias estão cada vez mais insuportáveis, a gente tende a se contentar com as informações fragmentadas, difusas e incompletas. E porque chegam “fake news” todos os dias e todas as horas, a gente se cansa e desiste de buscar as informações mais fidedignas.
 
A gente se habitua a uma existência absurda, mas não deveria. A gente se acostuma com o descaso e a indiferença com centenas de milhares de mortes. Se a gente aceita a negligência política na Pandemia, o discurso de banalização das mortes, as estratégias contra a vacina, o incentivo criminoso do uso de medicamentos que não funcionam,  a gente não estranha mais os absurdos.
 
A gente se acomoda à carne exausta dos profissionais da saúde. E, como as condições de trabalho são da ordem do insuportável, achamos aceitável faltarem insumos, máscaras, seringas, testes, leitos e oxigênio, transformando os hospitais em câmeras de asfixia. 
 
Em nome da  “economia”, do “mercado” e da “eficiência”, a gente tolera pagar o preço com vidas. A gente aceita instituições, empresas públicas e privadas obrigando funcionários a se aglomerarem em ambientes fechados por trabalhos que poderiam ser feitos em casa.
 
A gente se acostuma a sofrer psicologicamente diante de situações tão traumáticas, mas não deveria. Talvez, a gente tolere porque já está doendo muito, incessantemente. E, por nos acostumarmos aos impactos diários, aceitamos a indiferença como nossas companheiras diárias. Nessa toada, a gente passa a encurtar os processos de lutos e, assim, também vai morrendo partes nossas: pessoas que amamos, empregos, sonhos e projetos. Por isso, ficamos também mais sozinhos, todos nós, sejam os que estão ou não com o vírus. 
 
A gente tolera, enfim, aquilo que deveria ser intolerável na Pandemia: o próprio descaso com vidas humanas.

Encontre mais sobre a autora:

Site: www.fernandafazzio.com.br

Instagram: @fernandafazzio e @eradapressa

Podcast: Era da Pressa (SpotifySoundcloud e Youtube)

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