A escuta poética de Christopher Bollas

  “Quando se trata de recepção de personagem,

a sensibilidade do analista é comparável à disposição

mental de quem está ouvindo uma poesia.”

C. Bollas

Christopher Bollas é um autor singular no interior da tradição psicanalítica. Tal afirmação poderia ser ilustrada a partir de um apanhado de conceitos, teorias e desdobramentos da prática clínica presentes em seus livros A sombra do objeto (1987), Forças do destino (1989), Sendo um personagem (1992), O momento Freudiano (2007), entre tantos outros. Ou então, levando-se em conta sua proposta (política) de um convívio possível (não-destrutivo) entre as Escolas de Psicanálise, novamente nos encontramos diante de uma voz destacada num meio tantas vezes abafado pelo peso ruidoso de figuras e grupos centralizadores e excludentes.

A partir do ensaio “Personagem e interformalidade”, que integra a coletânea The Christopher Bollas Reader, gostaria de pensar a singularidade da proposta psicanalítica bollasiana nos termos de um encontro precioso entre a psicanálise e a arte/literatura[1]. Em outras palavras, quero destacar aquilo que qualifica sua obra como um verdadeiro guia para a escuta poética da experiência humana. Do encontro com a expressão literária Bollas extraiu não somente os alicerces de sua formação intelectual (vale lembrar que ele doutorou-se em literatura, além de ser autor de quatro obras ficcionais publicadas)[2]. O olhar sobre a experiência estética constitui uma espécie de coração pulsante do seu pensamento. Trata-se, ainda, de um registro visceral a partir do qual ele articula o acontecimento humano às suas grandes potencialidades criativas e formas de vida.

Para Bollas, a vida que se desdobra em “formas de ser e de relacionar-se” só pode ser devidamente compreendida e experimentada mediante uma abertura essencial (recepção) ao “jogo das formas” que a constitui. Estamos diante de uma concepção fundamentalmente processual da vida humana: o fluxo da vida, o Ser feito processo, é forma e in-formação impressas no mundo e nas relações… De modo singular, Christopher Bollas parte em busca desta dimensão da existência humana que não se esgota no registro simbólico da linguagem (“o verbalizado”), mas que se articula para além/aquém desta, num movimento paradoxal entre o dizível e o indizível de toda experiência. Exatamente por ser bastante sensível ao Ser que escapa às tentativas de enquadre, classificação e descrição, está em questão na psicanálise bollasiana o “ser-enquanto-ser” que se manifesta para além de conteúdos ou temas explicitados: “Em uma análise, pode-se perceber o personagem somente quando se reconhece a impossibilidade de organizar tal percepção em temas.” (a percepção a que se refere Bollas é uma qualidade de escuta das formas ou traços que se insinuam inconscientemente – através do “inconsciente receptivo” – no encontro entre dois ou mais selves.)

Há neste modo de conceber a experiência a recusa de uma primazia do domínio representacional no âmbito das relações humanas. A qualidade da experiência que interessa ao autor é aquela que se “presenta” a cada vez, a cada encontro, através de uma “comunicação profunda” entre dois idiomas;[3] uma troca de formas possíveis (interformalidade) e modos de ser que se realizam no movimento que consiste em afetar e ser afetado pelo outro (e pelo mundo). Este movimento, testemunhado pelo próprio autor nas suas relações de amizade, não pode ser descrito ou formulado diretamente em palavras:

Meus amigos e eu podemos falar sobre praticamente qualquer coisa, mas existe uma questão profunda que nunca podemos formular em palavras. Eu não posso expressar para um amigo o quanto ele é importante para mim, como sinto a forma do seu ser processando-se através de mim, como o organizo residualmente em uma matriz interna da mente atribuída ao seu ser; nem posso perguntar “quem sou eu?” — por mais que eu queira saber quem sou para os outros.

No intuito de tentar apreender aquilo que escapa ao sentido contido/manifesto das palavras/narrativas Bollas faz uma aposta na expressão literária, transportando para a prática clínica a noção de personagem. O personagem, como um conjunto de traços ou formas, corresponde ao “DNA do ser individual. O self de alguém enquanto idioma da forma.” Não se trata apenas de um conjunto de significados (conteúdos) reunidos em torno de individualidades fechadas, mas de um “padrão de ser e de se relacionar gerado pelo idioma do self de cada pessoa.” Assim, para Bollas o personagem humano é muito mais do que um composto de sentidos, atributos, nomes e descrições, mas tudo aquilo que in-forma a experiência através de ações: “O personagem fala por meio de objetos musicais, da pintura, da dança e assim por diante”.

A literatura, o cinema e o teatro constituem, portanto, um lugar privilegiado de inscrição estética, ou seja, um espaço onde se dá o jogo das formas e modos de ser que alimentam e dão vida aos personagens. Por exemplo, poderíamos pensar a qualidade estética da cena do voo do saco plástico dançando ao vento no filme Beleza Americana, de Sam Mendes, e o significado daquele “jogo de formas” para a constituição da experiência do personagem Ricky Fitts, um jovem solitário que se alimenta das imagens capturadas em sua câmera de filmagem.[4]

(Imagem: Beleza Americana, 1999)

Ricky, Jane e a dança do saco plástico

Em Beleza Americana o significado da vida é experimentado de uma forma agônica. Os personagens parecem condenados à existência esvaziada dos subúrbios norte-americanos. E as formas capturadas pelas lentes de Ricky se revelam em momentos de profunda delicadeza, solidão e desamparo. Num instante nos deparamos com um verdadeiro “momento estético”, nos diria Bollas[5], capaz de restituir (evocar) à experiência um modo de ser que ultrapassa o registro imanente de uma vida vazia de sentidos, marcada por relações humanas brutalmente empobrecidas. Diante das imagens do saco plástico dançando ao vento, Ricky diz à personagem Jane Burnham:

“Você quer ver a coisa mais bonita que já filmei? Era um daqueles dias… alguns minutos antes de nevar. E havia uma eletricidade no ar. Quase dá pra ouvir… Este saco estava apenas… Dançando comigo… Como uma pequena criança me implorando para brincar. Por quinze minutos… E nesse dia eu percebi que havia esta grande vida por trás das coisas. E essa força incrível e benevolente queria que eu soubesse que não há razão para eu ter medo… Nunca. O vídeo é uma substituição inferior, eu sei… mas me ajuda a lembrar… eu preciso lembrar. Às vezes tem tanta beleza… neste mundo… eu sinto como se eu não pudesse suportar… e meu coração… fosse ceder.”

O saco estava dançando com o personagem de Ricky… as formas capturadas por Ricky compunham o idioma do seu personagem… e, como uma espécie de grande tesouro guardado, Ricky emprestava seu “jogo de formas”, ou modo de ser, à sua amiga Jane, revelando através de seu idioma “esta grande vida por trás das coisas”. A insatisfação de Ricky com a reprodução da cena no vídeo (“é uma substituição inferior”) nos faz pensar, ainda, na impossibilidade de representação da experiência estética vivenciada pelo personagem. No entanto, Ricky reconhece a qualidade da memória evocada pelas imagens… a processualidade das formas é irrepresentável e indescritível, mas pode e deve ser lembrada! Ao fim da cena Ricky se encontra totalmente tomado pela beleza registrada, e Jane, como que devolvendo a Ricky a impressão do efeito causado pelo personagem, aperta sua mão.

O personagem existe como um modo de ação; e, enquanto atuação e realização há sempre uma defasagem no exercício mental que deseja apreender o efeito do personagem: “O personagem do analisando usa o analista por meio de múltiplas micro-ações que in-formam o analista sobre o idioma do indivíduo. O desafio deste fato da vida é que não podemos expressá-lo em palavras.” A comunicação entre personagens comporta uma enorme complexidade. De acordo com o autor, numa determinada representação do próprio self ou de outrem, deve-se ser capaz de perceber aquilo que se apresenta inconscientemente (“forma inconsciente da narrativa”), revelando um “conhecido não pensado”. Tal como testemunha o próprio Bollas na sua relação com os amigos, não importa tanto o que se diz, quando o essencial, ou seja, “a forma do seu ser processando-se através de mim”, é inapreensível em termos de um registro puramente descritivo… Esta forma de “comunicação profunda” entre dois selves, o que Bollas chamou de “interformalidade” (que não se confunde com a intersubjetividade), ganha a sua especificidade se pensarmos no contexto vivo e dinâmico da “sala de análise” (um “teatro” especialmente projetado para a expressão e reconhecimento da forma estética do personagem do analisando). Nesse sentido, cabe ao analista perceber/acolher os traços do personagem do analisando:

Analisar, nessa área, é engajar-se na identificação perceptiva, que é resultante do trabalho do inconsciente receptivo. Para acolher o personagem do outro, é necessária uma decisão inconsciente que permita tal acolhida por parte do recipiente. Essa decisão pode ser expressa como a inteligência da recepção, a capacidade de permitir que o self seja impressionado pelo outro. As raízes dessa capacidade são prazerosas; elas residem na relação receptiva da mãe com seu bebê, e nós levamos adiante essa relação como adultos no modo como apreciamos receber outras pessoas e o mundo dos objetos. Para envolver essa receptividade no espaço psicanalítico, o analista deve esvaziar a mente, ele precisa estar, em termos bionianos, “sem memória ou desejo”, para que a percepção inconsciente do personagem seja possível.

É preciso dizer também que a dimensão verbal deste encontro baseado na interformalidade, quando o analista participa da recepção do idioma do analisando, tem o seu lugar através de uma necessidade de testemunho por parte do analista. O testemunho, no sentido expresso por Bollas, não se refere às interpretações e comentários do analista sobre o analisando. Testemunhar as formas que compõem o idioma do analisando é um modo singular de estar presente e perceber a forma estética do personagem: “Indescritível, porém essencial à comunicação humana, esse fato precisa de um testemunho verbal.”

A escuta poética proposta pela psicanálise de Christopher Bollas é, assim acredito, um dos grandes momentos de expressão da riqueza do seu pensamento. Bollas permitiu à prática clínica (e para além dela) o acolhimento e reconhecimento de uma existência esteticamente qualificada, como fica claro nesta bela passagem:

As pessoas podem ser atraídas umas pelas outras devido às semelhanças em seus gostos pessoais e abordagens formais à vida, ou podem ser atraídas devido às diferenças, contudo, seja como for, numa relação formal auspiciosa, os participantes estarão fomentando uma interformalidade mais ampla, mais profunda, mais abrangente. Duas pessoas que estão intimamente ligadas uma à outra porque encontraram maneiras de se envolver com as expressões formais uma da outra. A ações podem ser poucas, as palavras silenciosas, mas haverá uma matriz de entendimentos formais. Forma a forma, de um ser para outro ser, isso é parte do conhecido não pensado. O conhecido não pensado pode ser, de fato, a base de uma jouissance do real interformal, o bem-estar do engajamento ‘sem pensamento’ entre um self e um outro.

O projeto psicanalítico de Bollas confere dignidade ontológica à processualidade dos encontros, sua dimensão sensível (experiência estética). Tal abertura, que aqui tentei ilustrar através do empréstimo de Bollas à forma estética/literária do personagem, é uma aposta na experiência que não se deixa achatar por conteúdos representacionais empobrecidos. E isso, vale ressaltar, não é pouco.

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João Paulo Ayub é Psicanalista e Dr. em Ciências Sociais.

[1] – Os trechos citados ao longo deste comentário foram todos retirados do ensaio “Personagem e interformalidade”. Bollas, Christopher. The Christopher Bollas Reader. Routledge, 2011.

[2] – Dark at the End of the Tunnel (2004), I Have Heard the Mermaids Singing (2005), Theraplay and Other Plays (2005), Mayhem (2005), todos publicados pela Ed. Free Associations Books.

[3] – Sobre a importante noção de idioma pessoal elaborada pelo autor: “O idioma que dá forma a qualquer caráter humano não é um conteúdo latente de significado, mas uma estética na personalidade, procurando não imprimir o significado inconsciente, mas descobrir objetos que se conjugam em uma experiência carregada de significado.” (Bollas, 1998, p. 64)

[4] – Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=rJOTxTbMazs

[5] – “Do meu ponto de vista, o momento estético é uma ressurreição evocativa da condição egoica precoce, muitas vezes produzida por uma ressonância repentina e misteriosa com um objeto, um momento em que o sujeito é capturado por uma intensa ilusão de estar sendo escolhido pelo ambiente em alguma experiência profundamente reverente.” (Bollas, 2015, p. 73)

Referências Bibliográficas:

– BOLLAS, Christopher. Sendo um personagem. Rio de Janeiro: Revinter, 1998.

– ______________. “The character and interformality”. In: The Christopher Bollas Reader. London/New York. Routledge. 2011.

– ______________. A sombra do objeto: psicanálise do conhecido não pensado. São Paulo: Escuta, 2015.

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