Hoje, 26 de setembro, tivemos um dia muito rico de aulas ao módulo do curso O Barato no Divã: Pensamento Clínico em Curso deste segundo semestre de 2020; para distinguir este módulo daquele do primeiro semestre usamos o seguinte critério: reunir as aulas de psicofarmacologia dedicadas às drogas lícitas no primeiro, e no segundo, às drogas ilícitas.
Uso medicinal da cannabis
Neste dia, os alunos puderam discutir com o psiquiatra e pesquisador André Negrão, a questão do uso não médico e medicinal da cannabis. Tivemos perguntas muito instigantes trazidas pelos alunos que permitiram uma discussão aprofundada sobre pontos nevrálgicos do tema do uso medicinal da cannabis.
Destacamos a primeira questão: “poderia esclarecer o que quis dizer ‘não há evidência de causa, mas de precipitação’ e quais as repercussões disso na prática?” Esta pergunta motivou uma recordação da diferença entre causalidade e associação (estatisticamente falando) entre categorias que caracterizam a amostra estudada e o desfecho em questão.
Sabemos que o aprendizado da leitura de trabalhos epidemiológicos exige um longo caminho, mas conhecer alguns conceitos básicos já ajuda a iniciar a jornada. Afinal, este conhecimento é necessário, pois trabalhos epidemiológicos são uma parte significativa da construção da base cientifica do conhecimento médico que subsidia o raciocínio clínico. O estudo de amostras de populações de usuários de substâncias que desenvolveram algum diagnóstico psiquiátrico constitui um dos aprendizados que a epidemiologia oferece. E é assim que se estabelece associação entre categorias (sócio-ambientais, comportamentais, caracteriais, desenvolvimentais, etc.) e desfechos patológicos. Mas o estabelecimento de uma relação causal, que transformaria a categoria associada em fator etiológico, exige outros níveis de evidência, indicando uma ação mais direta sobre o aparecimento de adoecimentos e complicações passíveis de serem imputados ao efeito de substância psicoativa usada pelas pessoas em questão. Um acúmulo de estudos, passiveis de serem comparados, estudos de meta-análise (que reúne o conjunto das publicações sobre temas específicos e os qualifica segundo critérios metodológicos) servem de base para a produção de publicações que subsidiam a prática clínica: guidelines (diretrizes), manuais de boas práticas, dentre outros.
Quando a experiência clínica se baseia em diferentes campos de atuação que se estendem para além do modelo de atendimento individual sob demanda, “quando o paciente vem à consulta”, saímos do conforto de referências formatadas numa única referência e precisamos estender, ampliar, comparar e usar diferentes disciplinas para problematizar e formular os raciocínios clínicos que aquela relação e situação contextualizada propiciam. Mas mesmo se nos ativermos a um campo, como a psiquiatria, tudo é mais complexo, pois lhe falta a tranquilizadora evidência anátomo patológica passível de subsidiar o diagnóstico como acontece na área das doenças infecciosas. Na psiquiatria o que mais comumente encontramos é uma presença multifatorial onde vários aspectos contribuem para o adoecimento.
Destacamos uma segunda questão: “o aumento de THC no tabaco de maconha pode ser considerado um risco para o desenvolvimento de sintomas psicóticos? Haveria como controlá-lo fazendo o contraponto com o CBD? Além disso, é possível que as ‘doses’ medicinais de cannabis (até 0,3%) produzam tais sintomas psicóticos?” Esta questão funcionou como um gatilho para que fizéssemos uma importante discussão sobre uma complicação rara, embora preocupante: o surgimento de quadro psicótico e sua relação com o uso da cannabis. O papel desempenhado sobre dois importantes componentes comumente encontrados na cannabis: os canabidióis e o THC, a questão da frequência do uso e da importância da potência dos princípios ativos presentes na preparação comercializada, são alguns aspectos que puderam ser discutidos, indicando o aprofundamento que foi possível atingir nesta aula. Pudemos inclusive tocar em alguns pontos que envolvem desafios e complexidade do manejo clínico quando há uma vigência concomitante do uso da cannabis ou outra substância psicoativa e de algum quadro psicótico diagnosticado.
A voz do usuário: a importância dos movimentos sociais
A aula seguinte do dia, A Voz do Usuário e a Importância dos Movimentos Sociais e Coletivos de Usuários e Ex-Usuários de Drogas, trouxe a necessária contextualização para apresentar o multiverso de posições que encontramos em nossa sociedade frente às drogas e seus usos. Sejam ou não participantes diretos ou indiretos destes movimentos, muitos de nossos pacientes chegam em nossos consultórios antenados sobre questões da regulamentação ou legalização das substâncias ilícitas, sobre qual o estatuto legal nos vários países, quando não chegam a dispor de informações científicas atualizadas sobre alguns dos detalhes que implicam diretamente na demanda de tratamentos não convencionais, como o uso terapêutico de cannabis medicinal, ou de psicodélicos. Reconhecer que a legalização ou regulamentação destes novos usos terapêuticos das drogas, até então consideradas há décadas exclusivamente como sendo ilícitas, traz questionamentos e exige elucidação sobre o lento processo de assimilação e desenvolvimento de critérios clínicos para eventual adoção ou não destes novos medicamentos.
A pressão para adotar o novo é um fator a ser considerado como variável que afeta negativamente os médicos. Qual a relação a se estabelecer com o profissional conhecido classicamente como “propagandista de laboratório” é um aprendizado que se tem na raça. Constitui um dos inúmeros não ditos do aprendizado médico. É preciso saber que o efeito da propaganda e da pressão social movida por ideologias com as quais simpatizamos ou antipatizamos afeta diretamente a prática clínica. Diagnosticar e problematizar tais aspectos protegerá nossos pacientes da precipitação ou recusa mal sustentada que as escolhas apressadas – actings médicos? – podem causar. E isso se torna mais viável se pudermos oferecer a oportunidade para nossos alunos serem tocados em seus âmagos por estas questões.