Da exclusão à visibilidade histórica
Lembraremos que, contrariamente ao inglês, que possui dois termos para designar “aquilo que acontece” (story) e o relato que fazemos disso (History), o francês tem apenas um – Histoire (História) -, o que complica ainda mais as coisas, como se o relato fosse consubstancial às realidades de que ele pretende dar conta e que o transborda por todos os lados. De Michel Foucault a Paul Ricoeur, a epistemologia contemporânea sublinhou esse ponto. O relato histórico é olhar, escritura, artefato, não artificio, certamente, mas escolha intimamente ligada ao presente do escritor. O esquecimento de que as mulheres têm sido objeto não é uma simples perda de memória acidental e contingente, mas o resultado de uma exclusão consecutiva à própria definição de História, gesto público dos poderes, dos eventos e das guerras. Excluídas da cena pública pelas funções ditadas pela “natureza” e pela vontade dos deuses/de Deus, as mulheres não podiam aparecer nela a não ser como figurantes mudas, penetrando por arrombamento ou a título de exceção – as mulheres “excepcionais”, heroicas, santas ou escandalosas – relegando à sombra a massa das outras mulheres. Na Antiguidade greco-romana como na Idade Média cristã, o silêncio da História sobre as mulheres é impressionante. “Mulheres que sabemos sobre elas?”, interroga-se Georges Duby na conclusão de um de seus livros (1991), em que, entre nobres e clérigos, indaga o destino delas.
Quando a História se constitui como disciplina acadêmica e saber instituído, Michelet parece romper esse silêncio. Mas, ao assimilar as mulheres à natureza e os homens à cultura, ao atribuir às mulheres um papel maternal normativo, ele reproduz a ideologia dominante, aquela que, no mesmo momento, consolida a Antropologia nascente de Morgan e Bachofen. O positivismo de fim de século, centrado na história política, expulsa essas veleidades sexuadas. Os fundadores da Escola dos Anais – Marc Bloch e Lucien Febvre – e em seguida a segunda geração – Fernand Braudel, Ernest Labrousse – enfatizam o econômico e o social, instâncias assexuadas. A classe aparece então como uma categoria de análise das mutações sociais muito mais pertinente e dinâmica que a família, instância de reprodução, ligada à natureza, até mesmo à ordem moral. De maneira semelhante, trinta anos antes, a Sociologia de Émile Durkheim, orientada pelo “fato social”, havia suplantado a escola de Frédéric Le Play e as “monografias de família” da Sociedade de Economia Social, que tinham o mérito de atribuir grande destaque ao papel das mulheres na vida doméstica. Como acontece frequentemente, o conflito das sociologias recobriu escolhas politicas e ideológicas – a República contra a Igreja – perfeitamente justificadas, mas que podiam ter igualmente efeitos perversos no domínio da pesquisa. Neste caso, a classe recalca a família, como a produção, identificada com o único produto físico, oculta o doméstico e o operário – metalúrgico, mineiro, da construção civil – suplanta a dona de casa no simbolismo do fazer.
O aparecimento de uma História das mulheres – portanto uma História sexuada – se produz no inicio dos anos 70. Três séries de fatores contribuíram para isso: 1) os científicos, principalmente a influência da Antropologia e da demografia histórica, que reintegram a família e o corpo na trama da História, enquanto a crise dos grandes paradigmas explicativos favorece a fragmentação da História – falemos de “esmigalhamento”- e a eclosão de uma grande diversidade de objetos, a consideração de novos atores – a criança, os jovens – e de novas intrigas – a vida privada, por exemplo; 2) os sociológicos: a presença crescente de mulheres na universidade como estudantes e em seguida como docentes, portadoras de interrogações novas; 3) os políticos: o movimento de liberação das mulheres, cuja primeira preocupação não era fazer a História, induziu a curiosidades, efeitos, até mesmo à vontade de operar uma “ruptura epistemológica” nas Ciências Humanas e Sociais. Todas as disciplinas são de alguma forma atingidas, e a História, disciplina no entanto viril por sua sociologia e seus valores, especialmente na França, em razão do forte componente histórico da identidade nacional, passa a sê-lo a partir do começo dos anos 70. Cursos, seminários e colóquios contribuem para isso, enquanto mestrados e teses constituem uma “acumulação primitiva” de que a História das mulheres no Ocidente (Duby: Perrot, 1991-1992 é uma primeira cristalização e legitimação.” p. 112-113.