São muitas as relações que podem ser estabelecidas entre sonhos e drogas. A aproximação da viagem com a droga e a experiência onírica daquele que dormindo sonha. A presença da droga interferindo e alterando a experiência do sono e sonho. A falta da droga: abstinência gerando perturbações do sono, sonho e vigília.
Neste momento escolhemos falar da importância do sonho com a droga nos pacientes que estão em tratamento de sua dependência. Estes sonhos podem ter inúmeros sentidos. Mas antes vamos recuar um bocado no tempo. Lembrei-me de um trecho trazido por Sidarta Ribeiro em seu excelente livro O Oráculo da noite – A história e a ciência do sonho. Neste trecho somos apresentados à perplexidade de Santo Agostinho frente a persistência de seus sonhos eróticos. A perplexidade advém da persistência dos sonhos mesmo tendo adotado uma posição ativa de supressão na consciência de pensamentos sexuais, além da adoção consciente do celibato como forma de existência. Estamos num momento da história onde a descoberta do inconsciente e da função da sexualidade na constituição identitária e psíquica ainda não estava disponível para a humanidade. Assim a perplexidade se manifesta:
“(…) dirigindo-se a Deus, Santo Agostinho explicita seu espanto frente à autonomia dos sonhos: por acaso não sou eu mesmo naquelas circunstâncias, Senhor meu Deus? E, no entanto, há tamanha diferença entre mim e mim mesmo nos dois momentos, quando passo deste estado para o sono, ou daquele volto a este! (…) Porventura adormece com os sentidos corporais? E por que amiúde acontece que mesmo em sonho resistimos e, lembrando nosso propósito e permanecendo totalmente castos nele, não concedemos o assentimento a nenhuma daquelas obscenidades? Contudo, são estados tão distintos que, quando acontece o contrário, acordando readquirimos a paz da consciência e, por esta mesma distinção, descobrimos que não fizemos aquilo, muito embora deploremos que aquilo, de alguma maneira, se tenha feito em nós. ” (Ribeiro, 2019, p. 75-76)
Ribeiro, S. O Oráculo da noite. A história e a ciência do sonho. São Paulo, Companhia das Letras, 2019. p. 75-76.
Esta mesma perplexidade encontramos nos pacientes que já tendo adquirido um controle maior sobre seu uso dependente anterior são surpreendidos por um sonho de uso “explícito” da droga de eleição. E a surpresa advém da crença de que aquilo que estava “sob controle” deveria ter desaparecido de si. Ser visitado pelo desejo de usar a droga traz a lembrança de que aquilo que está silente, não está morto ou desaparecido. Há o “fantasma” que retorna. E o temor correlato de que as coisas poderão sair do controle novamente.
O tema dos sonhos com drogas teve sua importância reconhecida a ponto de ter sido tema de um livro sobre sonhos com drogas Drug Dreams. A abrangência da abordagem do tema neste livro começa por uma apresentação geral de sua prevalência e um esboço de classificação segundo os temas sonhados. Dedica-se a trazer as implicações clínicas do sonho sobre drogas analisando-as segundo as distintas situações frente às drogas: abstinência, fissura pela droga; além disso problematiza quais poderiam ser algumas das consequências clínicas de seu aparecimento ao longo do tratamento da dependência. Finaliza com uma seção dedicada à pesquisa e teorias: começa com uma revisão do que ele propõe ser a visão clássica das pesquisas e teorias psicofisiológicas sobre os sonhos com drogas, e entra na teoria sobre os sonhos de Freud, até chegar a modelos contemporâneos de neuropsicanálise e suas implicações para o entendimento dos sonhos por esta perspectiva.
Colace, C. Drug dreams. Clinical and Research implications of dreams about drugs in drug-addicted patients. London, Karnac Books, 2014.
Dependendo da abordagem de cada autor a posição pode ser negativa em relação ao impacto do sonho com drogas no tratamento. Entendemos que a posição mais alinhada com uma clínica pautada no valor atribuído à experiência é aquela que investiga o valor e sentido do sonho para o sonhador singular, num dado contexto do processo psicoterápico ou psicanalítico, levando em conta ainda aspectos da transferência. Nesta perspectiva não faz sentido atribuir a priori um significado negativo a qualquer sonho com drogas. Na perspectiva de uma clínica especializada, que incorpora a psicanálise em sua condução, admite-se diferentes consequências do sonho com drogas. Quando se leva em conta o momento do tratamento, quando o paciente adquiriu ou não um controle mais estável do consumo anteriormente dependente e compulsivo o efeito de sentido deste tipo de sonho pode adquirir diferentes significados. As associações que o paciente faz ao relatar o sonho, o tipo de relação que se manifesta no sonho com a droga de eleição¹, este conjunto de aspectos revela diferenças importantes.
Mesmo o relato do sonho pode indicar que este está menos propenso a ser uma manifestação de um desejo, e mais uma manifestação de uma simples descarga de excitação, despertada, muitas vezes pela experiência mais intensa da abstinência; neste tipo de sonho o relato sugere tratar-se de uma expressão mais concreta com um caráter mais maciço de natureza alucinatória, muitas vezes similar aos sonhos típicos de pacientes que sofrem de STEP. Neste tipo de sonho está presente uma revivescência do efeito do uso da substância, reproduzindo no sonho os efeitos que o paciente habitualmente experimentava quando estava usando a substância. Mesmo nestes casos a experiência subjetiva pode ser distinta: desde medo de recair por não resistir à fissura aumentada pela experiência do efeito da droga revivida no sonho, ou alívio por descobrir que se tratou “apenas de um sonho”, e não de uma recaída de fato.
Esperamos ter salientado aqui a importância a ser atribuída aos sonhos com drogas – sobretudo com a droga de eleição – ao longo do processo terapêutico, reconhecendo que os sentidos e impacto neste mesmo processo serão variados a depender inclusive da capacidade do psicoterapeuta em validar e cuidar especificamente destes relatos.
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¹droga de eleição: é aquela droga preferida, dentre todas experimentadas. No contexto da clínica, é a droga com a qual a relação se tornou “problemática” – configurando abuso, dependência ou “transtorno” – gerando a necessidade de procurar ajuda para tratar-se.