José e o ônibus prateado: memórias de viagem I

Chicago, julho de 1994

Uma única vez estive em Chicago. Lembro-me de ruas amplas transversais de uma grande avenida que, margeando um rio, terminava ou começava próximo de um dos Grandes Lagos. Era verão, a luminosidade e a brisa produziam uma sensação de leveza que contrastava com a majestade dos edifícios com uma arquitetura ao mesmo tempo imponente e arrojada. Anos depois folheando uma revista sobre arquitetura descobri que a forte impressão deixada pelas imagens destes edifícios relevava uma sintonia sensível às qualidades daquelas formas arquitetônicas que de fato eram particularmente importantes para o desenvolvimento da arquitetura configurando um estilo ou escola arquitetônicos próprios. Uma outra avenida também nas proximidades do lago nos levava até um dos principais museus de Chicago, ao ar livre, ao longo do calçadão, distribuíam-se graciosas figuras roliças de um escultor latino-americano – as gordinhas de Botero. Este conjunto de memórias que bem poderiam compor um álbum de imagens de uma viagem turística contrastam com outras imagens que não constam de postais; são imagens de ruas, edifícios e praças de bairros populares visitados conforme previsto na apertada agenda preparada para nós pela Universidade do Estado de New York.

Arrojado é um termo que podemos usar para a belíssima arquitetura de Chicago bem como para a história que me ocorreu de reproduzir aqui.

Apresentando os protagonistas:  José e um ônibus

Seus personagens principais são José, pronuncia-se “hossê”, latino de origem, e um ônibus. José, um diplomata do sub-mundo das drogas, era um agente de saúde. Em inglês ele era conhecido como outreach worker – ORW, “um trabalhador de longo alcance”, termo mencionado nas publicações científicas que já eram feitas para descrever o tipo de programa pioneiro de que José participava. Ele fazia parte de uma nova abordagem dos usuários de drogas, centrada nas redes de relações sociais de usuários. Esta abordagem ao mesmo tempo uma metodologia de intervenção e de investigação, era considerada uma promissora aproximação para o entendimento da epidemiologia e comportamentos de risco da população de usuários de drogas, particularmente usuários de drogas injetáveis.

O ônibus, motivo principal de nossa visita a seu grupo, também fazia parte do conjunto de ações implantadas neste programa. O trabalho de José era uma novidade para ele e para o mundo. Ele fora contratado para trabalhar como agente de saúde responsável por levar aos usuários de drogas injetáveis mensagens e apetrechos que lhes ensinasse e propiciasse os recursos materiais para prevenir-se da transmissão do HIV/AIDS.

Tal proposta iniciada nos anos 90 era praticamente desconhecida do público em geral, muito pouco conhecida entre os profissionais de saúde pública e bastante mal recebida pelos profissionais que tratavam de dependentes de drogas. Até hoje existe uma resistência a esta proposta de prevenção da transmissão do HIV/AIDS entre usuários de drogas injetáveis. Resistência que passa pelo indisfarçável mal estar de estar face a face com o semblante do jovem que imaginamos esquálido, pálido com os olhos fundos, arisco, um pouco lunático ou um tanto arrogante, nos olhando de esguelha, uma imagem mítica fixada em nossa memória como representação do junkie¸ em filmes como Cristiane F. (Uli Edel, 1981), ou o mais violento e levemente nauseante Trainspotting (Danny Boyle, 1996), ou ainda o quase intolerável Kids (Larry Clark, 1995).

Mas José não portava tal semblante; era um homem com idade indefinida, bem mais de 40, ou apenas envelhecido por uma vida anterior na qual suas reservas tinham sido precocemente debeladas. Sua tez e aspecto permitiam que o colocássemos imaginariamente como fazendo parte do cenário de qualquer periferia de centros urbanos latinos. Sua expressão revelava, quando falava do seu trabalho, um indisfarçável orgulho, seus olhos se iluminavam, falava desenvolto apontando aqui e acolá os locais onde seus contatos com UDIs costumavam se dar. Passávamos por estes locais às vezes de carro, às vezes a pé, em horários diurnos nos quais se viam poucos destes UDIs. Ele era uma espécie de guia turístico às avessas, tinha visível prazer em nos acompanhar pelo circuito que ele percorria em suas andanças noturnas. Praças, becos, edifícios abandonados, ruelas ou grandes avenidas, mas em cada lugar uma história era lembrada…

Ao seu lado aquelas paisagens, nem glamourosas nem aprazíveis em si, ganhavam matizes emocionantes; antes eram sobretudo locais de esquiva e desesperança, locais a serem evitados pelas “pessoas de bem”, pois associavam-se a perigo, onde a vida parecia encontra-ser com o seu lado mais soturno. Através dos olhos de José a paisagem se iluminava com a esperança de um mundo mais humano, nos locais onde antes por lá perambulavam aqueles UDIs em busca da droga, revelando que há muito haviam desistido de encontrar para si um lugar ao sol, agora passavam os OWR em busca de contato trazendo mensagens de defesa da vida. Antes se alguém procurasse estes UDIs ou era “cana” (para preencher a cota de prisões previstas para aquele período) ou para averiguar alguma contravenção cometida.

Numa pequena rua, sem nenhum atrativo em especial, encontramos estacionado o segundo personagem de nossa história: o ônibus prateado. Sem nada escrito por fora, com suas janelas veladas pela mesma tinta prateada, despertava imediatamente a curiosidade de quem o visse. O que fazia lá estacionado? Para que servia? Quem eram aqueles homens que se aproximavam a pé ou estacionavam seus carros nas imediações e discretamente se dirigiam para o ônibus. Lá se mantinham por poucos minutos, às vezes menos de cinco. Todos portavam uns saquinhos iguais aqueles com que portamos pãezinhos, amassados quando chegavam, mas lisinhos quando partiam. O que haveria naqueles saquinhos?

Fomos convidados a entrar. Dentro parecia um posto de enfermagem ambulante. Com móveis com gavetas e prateleira, um pequeno balcão, alguns recipientes de plástico bem grandes usados para dispensar lixo hospitalar tóxico. Algum material para curativo, copos descartáveis, duas cadeiras, as caixas com material educativo, e folhetos com endereços completavam o conteúdo; uma porta para entrada e uma para saída. Tratava-se de um ônibus concebido como um lugar protegido para realizar a troca de seringas usadas, contaminadas por seringas limpas, estéreis. O saquinho da chegada trazia as seringas sujas, o de saída um kit de prevenção: seringas e agulhas limpas, camisinhas, swaps (envelopes contendo algodão já umedecido com desinfetante), frasco com cândida, folhetos com endereços úteis e outros com instruções de como limpar seringas e injetar seguramente, usar camisinhas e cuidados com as seringas usadas.

Ao silêncio que acompanhou a surpresa inicial, seguiu-se uma cascata de questões pouco a pouco formuladas e respondidas. Como conceberam a ideia do ônibus? Como fizeram para decidir onde estacioná-lo?

A ideia que foi objeto de longa discussão e venceu foi de que a visibilidade parcial propiciada pelo ônibus estacionado em rua discreta, paradoxalmente poderia proteger os UDIs de dissabores com a polícia ao realizar mais uma incursão que acresceria os riscos com a repressão. Uma coisa é o risco inevitável para aquela pessoa que quer comprar a droga e às vezes a seringa, outra coisa é deslocar-se para um ponto carregando um saquinho com várias seringas sujas e voltar com outro com o mesmo número de seringas agora limpas. A ideia parecia inviável porque poderia ser considerada excessivamente arriscada. Como seria possível isso acontecer?

Afinal, os UDIs que miticamente costumamos imaginar são pessoas excessivamente destrutivas, desorganizadas, sem qualquer interesse na vida a não ser o interesse em drogar-se, quase suicidas. Por isso talvez o sentimento de estranheza e fascínio foi despertado em nós enquanto testemunhamos aquela cena silenciosa, com pessoas que sem estardalhaço entravam e saíam discreta e rapidamente daquele ônibus.

É verdade mesmo que aqueles homens tão diferentes entre si eram todos UDIs? Alguns engravatados com carrões antigos ou modernos, brancos ou negros elegantemente vestidos, mas todos parecendo estar fora de lugar; outros latinos ou negros chegando a pé com a aparência menos cuidada, mas sem parecerem típicos outsiders; vez por outra surgia um que correspondia ao perfil mais comumente esperado: mais magro, mais abatido, comme il faut, segundo a imagem clichê que o senso comum atribuía aos junkies.

Tenho a impressão que é comum a história das posições inovadoras que rompem com velhos tabus, que instituem ou denunciam uma crise antes silenciosa, conterem um tanto deste clima de incredulidade que experimentávamos nesta tarde de verão em Chicago. Os responsáveis pela implantação daquele projeto haviam ido mais além e corrido o risco de por em prática o que o preconceito a serviço do pensamento conservador teria vetado por julgar impossível.

Fim da PARTE 1

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