A face humana

(Episódio 7, da 2ª temporada da série The Twilligth Zone) Alerta de spoiler

Esta é história de uma relação que se estabelece entre um casal que perdeu sua jovem filha e uma entidade alienígena que surge no porão de sua casa. Tudo começa simultaneamente a um fenômeno cósmico, anunciado na televisão.

O centro da trama é o impacto da biopsicotransformação da entidade sobre o casal. Inicialmente ela apresenta um aspecto meio nojento e repulsivo. Após um primeiro tempo, o ser, que vinha sendo tratado pelo pai como um alienígena, toma a forma um tanto instável da filha morta.

Durante todo o episódio há uma luta entre o testemunho factual – a imagem inicial e a adoção da imagem da filha num segundo momento – incluindo uma escuta do pai, racionalmente orientada, e uma oposição da mãe, que desde a primeira aparição da imagem da filha se deixa entregar à emoção e desejo de poder reencontrar a filha morta.

O argumento do pai, de que a fala daquele alienígena era uma declaração da intenção de invasão e controle, não encontra eco diante da potência dos sentimentos despertados pela reprodução em noventa por cento da imagem e narrativas pessoais da filha.

A filha progressivamente se inteira dos fatos pela caixa de coisas pessoais que estava em seu quarto: diário, fitas de VHS, áudios etc. Além disso ela demonstra ser capaz de participar dos diálogos, pensamentos e sentimentos dos pais; isto lhe permite ser capaz de aprimorar o ajuste de sua imagem inicial. Conclui que eles precisam de sinceridade – sobretudo pelo discurso e reticência do pai em dar crédito a sua biopsicotransformação, permanecendo fiel à lógica e testemunho factual dos acontecimentos ipsis litteris.

Frente a isso a filha muda sua tática e revela os bastidores de seu ajuste discursivo, anunciando:

– Sou um drone biológico pacificador! Estou aqui para fazer algo similar a terraformação¹, só que aplicada aos seres biológicos já existentes. Senti sua dor; e quando apareci para vocês como sua filha, senti amor em vocês.

A partir daí o diálogo se dá com a filha sendo capaz de dizer o que não lhe fora possível dizer em vida. Cria-se uma nova tensão entre pai e mãe que também trocam acusações quanto à responsabilidade pela morte da filha pois, novamente o pai, aponta que ela nunca dissera algo assim antes. Ele começa a oscilar entre dialogar usando das afirmativas que a filha faz, agora já indo adiante de onde parara e afastar-se emocionalmente resistindo a sua tendência a ceder. Tudo que ele quer é mergulhar nesta chance de elaborar os sentimentos dolorosos e truncados de um luto parental insolúvel: uma filha que se mata. Só que por saber que ela não é quem aparenta ser, o pai representa o ponto de resistência a mergulhar na experiência emocional posta em jogo pela filha-drone-pacificadora.

O desfecho dado à tensão dramática da história indica uma defesa da necessidade de manter-se a objetividade e distanciamento emocional para fazer um bom julgamento tático, o que é uma solução pertinente à proposta inicial da trama da história: uma invasão alien está começando e ceder à ilusão oferecida pelo apego a um objeto amado é o método usado para consolidar a conquista.

A motivação desta escrita despertada pelo episódio deu-se pela potência figurativa do drama conflitivo instituído entre uma posição subjetiva racionalista e objetivante e uma posição subjetiva de entrega plena à experiência emocional, movida pela necessidade e desejo.

Pós-escrito: notas

Nota 1: Motivação didática: apropriação objeto cultural como forma alusiva de transmissão

A posição subjetiva de um analista ou psicoterapeuta deve levar em conta o estado psíquico, os tipos de problemas vivenciados, os sintomas e sua psicopatologia subjacente além de gestar as condições para que possamos ajudar o paciente a alcançar uma transformação psíquica em direção à cura.

O jogo intersubjetivo que constitui as melhores condições para uma relação psiquicamente transformadora será o resultado de ajustes e operações parcialmente racionais por meio de ajustes emocionais, parcialmente conscientes– distância/proximidade, discriminação/imersão – visando constituir uma relação viva em busca de alguma mudança.

Os ajustes deste posicionamento subjetivo começam nas primeiras entrevistas e contribuem e são viabilizados pelo acolhimento estabelecidona organização do encontro e seu enquadre.

Nota 2: ilusão frente a vulnerabilidade associada à dor do luto

A tática usada pelo drone biológico pacificador foi detectar a melhor via de entrada para estabelecer o contato e a relação desejada. Uma vez iniciado o contato encontrou como configuração pregnante o peso das carências e feridas deixadas pela perda de um objeto amado. Uma vez ajustada esta sintonia, o drone biopsiquicamente-transformado abre espaço para o estabelecimento de uma relação que pode ser apresentada como um caminho de cura. Para isso é preciso sustentar a ilusão criada, a olhos vistos. E a sustentação se faz habitando e desabitando a ilusão. Uma encenação do caráter transicional do lugar/não-lugar, ou lugar paradoxal que a ilusão ocupa na saúde. Esta leitura do centro da trama, encontra suporte nas concepções de Winnicott (1971) em seus desenvolvimentos teóricos (Lobo, 2013), e mesmo nas correlações com a clínica das adições (Reale, 2015). Foi adotada a ideia de que a presença da ilusão é algo constitutivo da saúde e integridade psíquica. Reconhecemos que o desenvolvimento da capacidade para aprender a reconhecê-la sem matá-la, consolida um amadurecimento emocional mais avançado. Deixar-se entregar à ilusão, cedendo aquilo que não deve ser passível de ser racionalmente arguido, mergulhando na experiência emocional constitui um movimento que contribui parcialmente para a restituição da esperança, além de oferecer a ambiência doce que restitui a capacidade de sonhar. Isso difere de precisar permanecer imerso nela, sem as oscilações e mudanças de ajustes que indicam uma diversidade de recursos emocionais e egóicos.

Nota 3.Ops: um parasita?

O ser é encontrado inicialmente num porão escuro da casa. A forma repulsiva inicial é gelatinosa meio transparente, de cor amarronzada e uma extremidade que parece uma ventosa de vermes parasitas intestinais. O fato deste detalhe não ter sido comentado pelos “personagens humanos” torna esta presença especialmente instigante. Será uma ironia esta forma inicial tomada pelo ser em sua busca do contato humano mais profundo? Os habitantes parasitários do intestino humano seriam a representação tomada pelo ser senciente recém chegado à Terra, ainda incapaz de fazer uma discriminação entre o biológico e psicológico, humano e não-humano?

¹Terraformar: modificar, hipoteticamente, a atmosfera e a temperatura de um corpo celeste (planeta ou satélite) de forma a que ele adquira as condições apropriadas para suportar um ecossistema com seres vivos terrestres.

Referências

Lobo, R. A clinica da ilusão e sua epistemologia. Rabisco Revista de Psicanálise. Vol. 3. Nº 1, p. 70-79, maio, 2013. 

Reale, Diva. Ilusão de ser auto-sustentável no uso e produção de drogas ilícitas. Trabalho apesentado como Comunicação Oral no X Encontro Brasileiro sobre Pensamento de Winnicott, São Paulo, setembro 2015.

Winnicott, D. ( 1971 ). O brincar e a realidade. Rio de Janeiro. Imago. 1975

Dicionário infopédia da Língua Portuguesa. Porto: Porto Editora, 2003-2021. [consulta em 27/02/2021, 7:27]. Disponível em:https://www.infopedia.pt/dicionarios/lingua-portuguesa/terraformado

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