Autenticidade e sobrevivência na era dos likes

Preâmbulo

Enquanto me preparo para um tempo dedicado à escrita, começo fazendo um pequeno, mas capital, ajuste no ambiente imediato: trago, para meu deleite, o delicioso aroma Época Bela. Não me lembrava do nome, só das circunstâncias e local onde o compramos: uma encantadora loja com cara de botica, dedicada a óleos essenciais e outras formas envasadas ou em barra de magníficos perfumes para o ambiente. Ficava no glamouroso bairro Palermo Soho, em Buenos Aires. Foi um achado ao acaso, no trajeto a pé para o hotel, última viagem à Argentina.

As últimas viagens ganharam um colorido especial em nossas memórias de quarentenados. Aromas e memórias capazes de acariciar a alma, hoje relembrados, de fato como uma muito bela época!! Memórias que acionam experiências necessárias para que continuemos a seguir adiante, em tempos tão sombrios. Estamos em 23 de março de 2021, vivendo o mais recente lockdown – tal como tem sido chamada a redução de atividades da cidade – proposto pelo governador de São Paulo, adaptado pelo prefeito para cada cidade do estado. 

Entrando no assunto…

O mote desta escrita é a preocupação com a ameaça a nossa autenticidade: estamos construindo um caminho para consolidar nossa existência e sustentabilidade como O Barato no Divã. Em busca de profissionais que nos ajudem a cumprir com a meta de subsistir economicamente, tive de apresentar O Barato no Divã pelo menos três vezes nestes últimos dias a profissionais da área de comunicação e marketing. Fui apresentada a termos como identidade da marca, passando pela imagem, incluso a visual, e uso das mídias digitais. Recebi variantes de recomendações quanto ao uso das mídias digitais culminando na urgente e imperiosa intensificação de nossa presença numa frequência mínima diária nas múltiplas mídias, até alguns approaches que implicariam na eleição (entre eliminação e priorização) de conteúdos de nossas publicações. O objetivo comum implicaria que a eleição do conteúdo deveria favorecer ou assegurar que estabelecemos com nossos seguidores um relacionamento em comunidade, nos disseram. Estamos tentando digerir estas apresentações para escolher quem melhor traduz em palavras aquilo que conhecemos de nós, mas ainda não sabemos como virá a ser.

Este campo e realidade virtual relembram que vivemos uma hiper-realidade onde novas formas de interação passaram a fazer parte de nossas vidas, trazendo termos e conceitos que continuam a soar um tanto estranhos a mim: ter seguidores é algo que nunca fez parte de minha antiga realidade. Nesta ‘nova realidade’, não só temos amigos (“de face”) que não conhecemos de fato, quanto temos seguidores.

Temos dado vida e existência com o nosso trabalho a uma presença que vai ocupando algum espaço no mundo material e virtual. Como idealizadora, principal e mais assídua trabalhadora d’O Barato no Divã, ainda me confundo com ele. Não apenas “vesti a camisa”: sou uma espécie de mãe primordial, logo logo quase-totêmica, que tem dado corpo e grande parte da forma à sua existência. E busquei assegurar que sua forma se faça com matéria da melhor qualidade possível: escolhemos, para dar corpo a partes muito específicas desta totalidade – o principal curso – especialistas dentre amigos que dedicaram grande parte de suas carreiras a temas de seu e grande interesse para o campo da clínica de álcool e outras drogas.

Mas o Barato cresceu e busca desenvolver-se em outras direções. Ele saiu da sala de aula e está explorando uma extensão de seu mundo escolar. Estamos visitando e habitando novos espaços e precisamos de ajuda para que possamos nidar nossa existência mais além do ensino desta clínica, sua identidade original.

Identidade e uniformidade

O termo identidade visual aciona em mim associações com a ideia de uniformização e engessamento. Também experimento uma saturação a priori diante da necessidade imperativa de intensificar nossa presença nas redes, tal como nos conclamam os profissionais de comunicação!! E tudo é geralmente apresentado como sendo algo inevitável!

Experimento uma certa vertigem quando somos convidadas a acreditar na premissa inexorável: “É imperativo!” Se quisermos tornar visível nossa existência no meio do maremoto de informações vindo das inúmeras mídias que por força do ofício, gosto ou inércia pessoal, frequentamos diariamente. Ideia nada agradável para alguém que foi talhada para uma vida mais reclusa que exposta. Experimento uma segunda fonte de saturação certeira: a exposição obrigatória. Como eu disse, a diferenciação entre mim e o Barato ainda está em andamento.

O abuso do uso destas mesmas mídias, um problema que ouvimos de nossos pacientes, parece claramente induzido pelo uso que todos somos convidados a fazer delas se quisermos que nossos trabalhos sejam conhecidos por meio da imagem que dele projetamos.

O limiar que nos separa da experiência de manipular os seguidores – um resultado do ser capaz de se deixar ser moldado pelo gosto revelado pelo público – parece sobrepor-se a uma mera exploração daquilo que espontaneamente desde criança os humanos buscam: aprovação por aquilo que estamos mostrando. Afinal todos gostamos de ser notados e apreciados. Aceitar otimizar e amplificar estas interações parece um desejo inocente apoiado em algo que todo ser humano experimentou na vida. Mas qual o limite? Quando isto se torna ‘vender a alma ao diabo’? Dorian Gray, eternizou-se numa bela figura; mas sua desgraça e fraqueza podiam ser flagradas no sótão escuro onde sua imagem pintada sofria o envelhecimento e mostrava a feiura da vaidade e ambição desmesurada.

Como e quando Disney deixou de ser um homem criador de desenhos – quadrinhos e animados – e passou a ser uma marca? Sem entrar no mérito das razões do êxito comercial, o que deve ter rendido algumas teses acadêmicas ou apenas cases de sucesso em MBAs, a relevância e valor de sua produção está na sua representatividade da cultura e imaginário da sociedade estadunidense de seu tempo. A arte e cultura pop encontraram nesta sociedade dos anos 50/60 a força para seu nascimento e expansão. Vimos na última matéria da nossa coluna “Porque o dia da mulher é todo dia”, também dedicada a este tema da autenticidade e sobrevivência, uma aproximação que fizemos entre a personagem principal da série The Marvelous Mrs. Maisel e a artista pop Yayoi Kusama.

“Criatura [Mrs. Maisel] e criadora (Yayoi) neste mercado da arte pop, evidenciaram como os autores, que construíram as narrativas de suas respectivas histórias, explicitam ou ocultam os percursos pessoais que sustentaram sua produção cultural. Mrs. Maisel é a personagem principal da série cuja trama narra sua vida pessoal enquanto apresenta a construção de sua incipiente carreira de comediante. No caso de Yayoi Kusama algumas peças documentais, como documentários propriamente ditos ou vídeos publicitários, reproduzem narrativas sobre esta artista”.

Discriminar e escolher o caminho que iremos percorrer é o problema que compartilhamos com o leitor neste pequeno artigo, adotando um pouco daquilo que tanto gosto nos documentários do tipo making of. Eles nos colocam em contato com os mecanismos e processos que acompanharam o nascimento e execução dos projetos que redundaram nos filmes, permitindo que experimentemos as hesitações e peripécias que levaram ao nascimento da forma final: o filme pronto. A aventura da criação.

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