José e o ônibus prateado: memórias de viagem II

Chicago, julho de 1994

Nota: de quantas autoridades precisamos para fazer um acordo

José respondendo a algumas de nossas perguntas revelou-nos uma passagem curiosa. Antes de poder colocar o ônibus na rua, duas negociações precisaram ser feitas. Primeiro, obteve-se uma autorização junto às autoridades judiciais que oficializava a permissão para o projeto de ORWs que incluía como uma das estratégias a criação do ônibus de troca de seringa.

A primeira negociação ocorreu entre as autoridades de saúde e de segurança locais. Ao final da negociação, obteve-se o apoio das autoridades policiais ao projeto assegurando cumprimento pela ronda policial de uma escala de ausência programada. Isto é, os dias, horários e locais onde o ônibus estivesse estacionado seriam conhecidos pela polícia para garantir que seus policiais não passassem por lá. Tal informação era informalmente repassada pelos ORWs aos membros da rede de UDIs por eles contatados, assegurando-lhes o reconhecimento e apoio a esta iniciativa de saúde.

A segunda negociação pode soar ainda mais inédita, pois ocorreu entre os representantes do projeto e o responsável pelo tráfico local. Chegaram a um acordo acerca de locais onde a presença do ônibus poderia ser aceita porque não representaria nem perigo nem prejuízo aos negócios lá exercidos. A escolha inicial de qual ruela foi mudada a pedido do traficante para que não atrapalhasse seu “ponto” de venda, tal acordo garantiu a não interferência nos “negócios da saúde” por parte do traficante e sua rede. A decisão acerca de quem seriam os profissionais a participar da negociação, respectivamente com a polícia e com a rede de tráfico, foi estrategicamente tomada a partir do reconhecimento da existência de diferentes instâncias de poder legal e local, do reconhecimento das características de suas respectivas organizações e mecanismos de realização de negociação. O objetivo comum foi reconhecer e aceitar a necessidade de estabelecer limites de atuação possíveis para cada “equipe” envolvida em suas atividades num mesmo espaço urbano. Assim já há algum tempo vinham convivendo pacificamente as “equipes” de saúde, de polícia e do tráfico local, relacionando-se com os UDIs segundo suas especificidades. Este me parece um exemplo paradigmático de uma forma de enfrentamento pragmática para encontrar uma solução na prática para um problema de saúde que envolvia questões legais, exigindo uma discussão e um enfrentamento ético para instituir uma solução ao problema da transmissão do HIV/AIDS envolvendo os UDIs e sua rede de relações sociais. Um acerto entre os diferentes atores sociais visando um bem maior – a preservação da saúde coletiva de UDIs e da população em geral – viabilizou a solução na prática.

Nota: Quão irresponsáveis, quão capazes são de fato os UD/UDIs!

A impressão deixada por esta visita foi profunda, levando a indagações e revisões de velhos preconceitos, por exemplo, acerca da irresponsabilidade atribuída aos UDIs de como eles seriam incapazes de assumir cuidados envolvendo suas vidas e de seus pares. Levou-nos a refletir acerca da visão demonizada do traficante que também participou do acerto de não atrapalhar, e da polícia que também deu uma cobertura às avessas à iniciativa.

Este programa constitui um exemplo de uma ação de saúde dentro da perspectiva de redução de danos.  José contava com grande satisfação a história do ônibus prateado. Sabíamos genericamente que ele, José, era um membro da rede de relações sociais de usuários de drogas, pois era esse o critério para contratar alguém na função de ORW – outreachworker, “um trabalhador de longo alcance”. Era possível imaginar que junto ao seu indisfarçável orgulho havia a provável mudança de estatuto social negativo para um positivo. O usuário de droga injetável carrega socialmente uma condição estigmatizada, mesmo entre os usuários de drogas ilícitas que os consideram “fim de linha”. Um trabalhador, agente de saúde, participando de um projeto de intervenção e pesquisa universitária, hostess de visitantes estrangeiros com certeza vivia uma oportunidade que não existia na sua condição anterior. A satisfação com que ele nos entregou seu cartão profissional, onde se lia o nome da instituição seu nome e sua função de outreachworker-ORW, era desveladora desta sua provável mudança de status. Minha fantasia reconstruía o que poderia ter sido a trajetória de nosso embaixador, cuja história pessoal talvez fosse o testemunho vivo da transição de uma mudança paradigmática na forma de ver e tratar socialmente os UDs. Esta nova perspectiva recém iniciada certamente faria parte da história do desenvolvimento da forma pela qual a sociedade encara o problema das drogas.

Nota: despedidas, nos últimos momentos intensificação da intimidade 

Enquanto pensava que ele talvez ainda vivesse percorrendo o fio da navalha, só que agora não como um UDI (ou UD), mas como ORW, o cair da tarde anunciava o final da visita e os preparativos para as despedidas que se vizinhavam. A conversa foi-se tornando mais informal, algumas perguntas sobre nós foram feitas por José e ele parece ter se apercebido do caráter evanescente da presença de uma psiquiatra (psicanalista não confessa naquele momento). José um pouco afastado do grupo, inicia um relato um tanto atropelado pelo avizinhar-se do adeus, desvelando uma história onde fraturas existenciais se evidenciam pelas inúmeras recaídas no uso de droga injetável, pelas formas ilícitas de obtenção dos recursos para financiar o uso da droga, suas passagens pela prisão e finalmente sua condição de portador do HIV. José me deixou entrever quão recente é sua (re)inserção social produtiva e valorizada, e quanto esta inserção é ainda muito frágil, pois a as marcas identitárias que o acompanharam em sua história pregressa não são apagáveis de fora para dentro. O percurso de volta havia sido iniciado, mas era ainda preciso reconhecer a existência de suas fraturas internas, cuja cura já começara pela reversão parcial de sua exclusão social, mas exigia um partilhar urgente de sua face privada profundamente ferida, carregando simultaneamente a pecha e os fatos que fizeram dele não apenas um doente, mas um ‘doente-criminoso’.

O que dizer naqueles instantes derradeiros, quando fui abruptamente deslocada do lugar de psiquiatra visitante estrangeira para o de confidente/analista?

Tomada de assalto pela vergonha quanto ao passado, pela precariedade quanto à continuidade do presente, desembocando numa insegurança quanto ao futuro, não me lembro muito bem do que lhe disse. José me captura na sua insustentável condição, posta em evidência pela situação de transição e perda: o momento da despedida. Lembro-me vagamente de dizer-lhe palavras de reasseguramento, de esperança e que soam aos meus ouvidos agora, e provavelmente lá também, como obviamente insuficientes, quase uma resposta social chavão.

O que experimentei naquele momento foi um vivo e pungente testemunho do desamparo de José que a situação de despedida permitia entrever. É possível que a necessidade de ser e sentir-se cuidado tivesse se manifestado pela aproximação da perda do contato profissionalmente caloroso que mantivéramos durante dois dias inteiros.

O que se passou entre nós talvez seja um vislumbre daquilo que estejamos reproduzindo institucionalmente desde os anos 90: um novo e frágil elo social de reparação se formou com os usuários de drogas ilícitas. Sua existência e experiência de vida tornou-se algo valioso a ser usado e compartilhado com resto da sociedade. Seu sofrimento e forma de adoecimento tornou-se instrumento de promoção de saúde para seus pares. Mas este novo valor atribuído socialmente não pode eximir a sociedade de oferecer a ele, e aos demais UDs que demandarem, acesso a um tratamento que permita a reconstituição não apenas do esgarçamento social mas também do intenso sofrimento psíquico frequente em suas histórias. Se a RD busca reduzir os maiores danos o tratamento clínico, como por exemplo a psicoterapia, visa reparar o sofrimento psíquico que antecede e sucede os quadros clínicos associados ao abuso e dependência de substâncias psicoativas.

A história de José, em particular sua forma de despedida, fez dele e do momento partilhado algo inesquecível para mim. Esta narrativa agora compartilhada com o leitor contém, como frequentemente acontece no ato da escrita, um gesto de esperança de que possamos continuar contribuir com as ações d’O Barato no Divã – cursos, seminários e matérias publicadas – com a instituição do encontro e cuidado onde antes havia rejeição e afastamento.

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