Toni Erdmann: a irrupção do absurdo

(Imagem: Toni Erdmann, 2016)

O inferno dos vivos não é algo que será; se existe, é aquele que já está aqui, o inferno no qual vivemos todos os dias, que formamos estando juntos. Existem duas maneiras de não sofrer. A primeira é fácil para a maioria das pessoas: aceitar o inferno e tornar-se parte deste até o ponto de deixar de percebê-lo. A segunda é arriscada e exige atenção e aprendizagem contínuas: tentar saber reconhecer quem e o que, no meio do inferno, não é inferno, e preservá-lo, e abrir espaço.

Ítalo Calvino, As cidades invisíveis

Toni Erdmann é um filme de produção alemã lançado em 2016, dirigido e escrito pela cineasta Maren Ade. Em linhas gerais, Maren conta a história de um pai, Winfried (Peter Simonischek), que busca se reaproximar da filha Ines (Sandra Hüller). O reencontro de Winfried com a filha adulta, totalmente absorvida pelo trabalho, coloca em cena não somente o drama familiar e seus laços rompidos, mas também o próprio sentido da vida para toda uma geração de jovens ambiciosos, tragados pelas exigências da carreira. A incorporação do personagem cômico-surreal Toni Erdmann por Winfried foi o artifício buscado pela diretora do filme para fazer irromper o absurdo sob os passos automatizados de Ines.
Toni Erdmann é um palhaço que responde a uma urgência do nosso tempo: é preciso arriscar o des-achatamento do sujeito diante dos imperativos do mercado. Este seria o contorno aproximado ou dimensão alargada de um problema que vai matando aos poucos os que estão dentro, fora ou na fronteira do “sistema”. A tentativa de resgate da vida submergida num mar de metas individuais é também o drama encenado por Winfried (na maior parte do filme sob as máscaras de Toni Erdmann), que muito tarde se entrega a um encontro-surpresa com a filha Ines. A tarefa não é fácil, já que Ines, por volta de seus trinta e poucos anos, dispôs o que tem de melhor na afirmação do empreendimento de sua empresa. A empresa, vale dizer, é ela mesma. Ou melhor, a vida reduzida à forma-empresa. As relações, os afetos, os desejos, o corpo, o tempo, o sexo e as drogas estão a serviço de um projeto cuja lógica é a da maximização da carreira. Não há para quê ou mesmo porque neste regime de produção cuja meta é a adaptação de cada peça… como um autômato, é a própria engrenagem a razão do funcionamento das roldanas…
Ines é um membro destacado de um grupo de jovens ambiciosos que presta consultoria para uma empresa multinacional em Bucareste, capital da Romênia. Os funcionários da empresa não absorvem nada do lugar. Não há qualquer troca cultural e todos estão cegos pelo funcionamento do sistema totalizante de maximização de ganhos financeiros. A neutralidade absoluta em relação ao ambiente/singularidades culturais dos romenos azeita a máquina concreta que deve seguir a todo custo a velocidade dos fluxos abstratos de capital pelo globo. O desemprego, o emprego e a vida dos sujeitos dependentes dessas grandes máquinas capitalistas não perturbam o movimento individual dos estrangeiros/empreendedores que mal conhecem a língua e o país em que estão.
Ainda com os restos de tinta no rosto, traços mal apagados de mais um de seus personagens cômicos, Winfried se pergunta diante da ex-mulher, mãe de Ines, onde foi que eles erraram na criação da filha… enquanto Ines, indiferente à festa de aniversário preparada para ela na casa de sua família alemã, passa o tempo de “folga” ao telefone, atualizando os contatos e promovendo a carreira. O instante crítico em que pai e filha, lado a lado, vivenciam uma comunicação extremamente precária, como se fossem dois estranhos, línguas estranhas, antecede as cenas da transformação de Winfried em Toni Erdmann: o pai parte para o resgate da filha.
O descompasso do tempo estendido desse reencontro é mais um plus na comicidade nonsense da “máscara” (peruca e dentes postiços com os quais Winfried/Erdmann busca a reaproximação). Erdmann não é um palhaço comum. O riso que ele quer provocar tem a ambição de estranhar o mundo, abrir uma fenda na paisagem engessada e desacelerar o funcionamento insano desta maquinaria que engoliu a filha. O personagem vestido pelo pai surge de forma inesperada às costas de Ines… nos encontros de negócios, festas de confraternização e centros de convenção. Algo nos diz que os gestos bizarros endereçados à filha só podem alcançar o objetivo pleno de um re-despertar para a vida se todo o universo de protocolos, estratégias e interesses pessoais também for implicado neste movimento. Erdmann quer resgatar, na filha, uma potência criativa que o psicanalista inglês D. W. Winnicott enxergava como sendo a maior riqueza que um indivíduo pode alcançar. Trata-se da capacidade de brincar com/no mundo que resulta na própria constituição de um mundo.
É preciso entender que, ao arriscar-se entre a nata do capitalismo avançado, Erdmann não quer apenas comover a filha distante. A irrupção do absurdo/cômico no universo acelerado e empobrecido de Ines funciona como uma espécie de “furo” a partir do qual uma saída se torna possível: a começar pela implosão desta identidade fechada sobre si mesma, típica do ethos empreendedor. De certo modo, o pai apresenta uma experiência de vida na qual toda a relação com o mundo é problematizada a partir de seu elemento crítico, qual seja, o da instauração de um sentido subjetivamente válido, comprometido com um modo de ser livre dos determinantes de uma máquina de produção mortífera. Para Winnicott, o desenvolvimento desta capacidade de criação (em oposição à simples reação) é sinônimo de vitalidade: ela condiciona a resistência às forças externas que reduzem a vida de cada um à mera adaptação ao mesmo tempo em que a própria realidade adquire o status de uma verdadeira conquista. Só assim a vida vale a pena…
O grupo de Ines, incapaz de experimentar a riqueza singular de cada lugar, de cada encontro, está muito aquém desse jogo a que se refere Winnicott. Assim como a própria psicanálise, para este autor, só é possível através de uma abertura especial ao universo criativo: “a psicanálise foi desenvolvida como forma altamente especializada do brincar, a serviço da comunhão consigo mesmo e com os outros.¹” Noutros termos, a relação entre analista e paciente deve permitir a fundação de um lócus privilegiado, onde a experiência do brincar torna-se um recurso existencial para o paciente.
Na medida em que insere o absurdo no mundo recortado por racionalidades instrumentais, Toni Erdmann configura uma alternativa a este modo de ser calculado próprio da cultura neoliberal. Algo que Ines parece experimentar também quando recebe nua seus convidados para a festa de aniversário em seu apartamento. Naquele momento, ainda que por alguns segundos, a máquina falha, emperra e dá lugar a um gesto espontâneo: pela primeira vez durante o filme a filha abraça o pai, escondido dentro de uma imensa fantasia búlgara destinada a afastar os maus espíritos.
É muito provável que a filha de Winfried não seja mais capaz de mergulhar nesse universo de possibilidades infinitas… e que ela continue até o fim desperdiçando o que tem de melhor, sua vitalidade, enchendo de sangue a maquinaria vampiresca do mercado…, mas nós, se ainda interessa experimentar uma vida “digna de ser vivida” (nos termos de Winnicott), não podemos ignorar o sentido de urgência que esse estranho e enorme sujeito com dentes postiços tentou nos provocar.
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João Paulo Ayub é Psicanalista e Dr. em Ciências Sociais.
 
¹D. W. Winnicott, O brincar e a realidade.

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