A hysteria na clínica psicanalítica

(Imagem: “Arch of Hysteria” de Louise Bourgeois)

A hipótese de que teria ocorrido uma “histericização da teoria psicanalítica” a partir da segunda metade do século XX até os nossos dias é uma constatação ou diagnóstico proposto por Christopher Bollas em seu livro Hysteria. O que ele quis dizer a partir desta constatação? Antes de entrar nos termos dessa questão, vale precisar que este é um livro singular na trajetória de Bollas, pois deixa a impressão de certa descontinuidade ou reorientação teórica no interior de seu pensamento.

Antes deste trabalho, publicado no final dos anos 1990, Bollas dedicou-se quase que exclusivamente aos desdobramentos e achados de seu primeiro livro, intitulado A sombra do Objeto (1987). Muito cedo o autor percebeu que no mais profundo de cada formação psíquica atuava uma “gramática existencial” capaz de processar no mundo dos objetos e das formas estéticas particulares os elementos responsáveis pela realização do Self. O “modo de ser” singular e único em cada expressão subjetiva daria forma ao que Bollas denomina o “idioma pessoal” de cada um. Neste primeiro livro, a elaboração da teoria dos objetos transformacionais situava o trabalho de Bollas em continuidade com a obra de D. Winnicott. Este, por sua vez, inaugurou no campo psicanalítico a compreensão do Self como um modo contínuo do Ser.

Por que a retomada de um tema freudiano por excelência – a histeria – parecia dar ao conjunto da obra de Bollas uma espécie de “correção” de rota? Segundo o próprio autor, a descrição e o tratamento das patologias contemporâneas recolhidas na clínica psicanalítica, sejam a “personalidade borderline” ou os estados-limite – dentre outras denominações –, pareciam desconsiderar aquilo mesmo que havia sido a grande descoberta freudiana, ou seja, o traumatismo de origem sexual. Daí a afirmação contundente do autor de que a teoria – e a clínica – psicanalítica, ao não considerar o que é próprio da dimensão sexual para a psicanálise, padeceria de um processo de histericização.

Longe de negar a importância psicanalítica dos desdobramentos estéticos enquanto matriz dos modos singulares de ser – a teoria dos objetos transformacionais –, a retomada dos textos freudianos sobre a histeria e suas implicações para a clínica contemporânea permitiu a Bollas identificar um processo de fixação do sujeito em torno do “objeto primário” e a consequente suspensão do “idioma pessoal” nos casos clínicos de histeria: “O mal do histérico é, então, a suspensão do idioma do self, a fim de realizar o desejo do objeto primário, estratégia baseada nas ações complementares de identificação e representação.”

Ainda de acordo com Bollas, o “histérico busca as dimensões não-sexuais do outro, recusando a redução ao sexual, insistindo na expansão para o auto-sacrifício transcendente ou mental em proveito de formas de amor mais elevadas.” O modo como a evitação do sexual pelo histérico encontraria sua confirmação ou naturalização numa espécie de escuta muda aos apelos do caráter traumático que o sexual imprime em toda relação é algo digno de atenção. Nos casos em que isso se dá no interior da relação analista/paciente, o recalque do paciente parece se encontrar com aquele do analista na medida em que ambos, numa espécie de conluio inconsciente, deixam de fora do encontro analítico os significantes traumáticos que atravessam a sexualidade de cada um. Num dos capítulos do livro Hysteria, “A sedução e o terapeuta”, Bollas expõe uma situação em que o (des)encontro entre analista e paciente – expresso pela incapacidade do primeiro de dar-se conta do que é próprio do trauma sexual que habita o coração do inconsciente – terminou de forma trágica para ambos:

“Quentin é um psicólogo que teve uma grande prática cuidando de pessoas com distúrbios alimentares e clientes com disfunção sexual. Grande conhecedor da literatura analítica, especialmente nos campos da psicologia do self, das relações objetais e separação-individuação. Ele acreditava que a maioria de seus pacientes haviam sido traumatizados em razão da falha nos cuidados parentais em sua infância e que eles necessitavam de alguma forma de transformação por meio de uma nova espécie de funcionamento empático, atuando no ambiente clínico. […] Ele normalmente se sentava no divã com seus pacientes que estavam em sofrimento e, vez por outra, perguntava-lhes se queriam segurar sua mão ou ter seus braços ao redor deles. Aparentemente, a maioria queria. E, aparentemente, isto era o fim de tudo.”

Bollas continua o relato clínico com a descrição do tratamento de Suzie por Quentin. O terapeuta repetiu com ela o “acolhimento” habitual, mas algo muito estranho se deu na relação terapêutica. A paciente desapareceu subitamente das sessões para, dias depois, acusar Quentin de assédio sexual. Abalado, o terapeuta não sabia o que dera errado: ele continuava a perguntar-se se Suzie por acaso não teria sido “verdadeiramente” abusada pelo pai… O trauma sexual que levou ao fim da análise – e seu trágico desfecho – não pôde ser elaborado pelo terapeuta porque, amparado em certa teoria, tratava-se para ele de algo excluído da cena analítica. Quentin acabou seduzido pela ideia de uma relação onde um par se completa inteiramente – um amor transcendental? –, quando aquilo que é da ordem do sexo insiste numa permanente secção.

O diagnóstico bollasiano de “histericização da psicanálise” nos faz pensar que nunca é tarde para levarmos em conta uma vez mais o que o trabalho de Freud nos deixou como um legado, especialmente no que tange à dimensão ampliada do sexual e suas manifestações inconscientes. Não considerar o fator traumático do erotismo sexual em qualquer situação analítica seria uma outra forma – como nos mostra Bollas em seu exemplo clínico – de fazer-se esquecer ou desmentir o que é próprio da divisão instaurada pela sexualidade. Noutras palavras, podemos dizer que o risco desta confusão é também confundir-se para sempre e irremediavelmente na linguagem erótica que vem do Outro.

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João Paulo Ayub Fonseca é psicanalista e doutor em Ciências Sociais pela Unicamp com tese intitulada “Arte é sangue, é carne – a riqueza e a miséria da palavra no romance de Graciliano Ramos”. Autor de Introdução à analítica do poder de Michel Foucault (Intermeios, 2015).

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