Memórias do Barato no divã

Raízes francesas e trabalho de rua.
Les Halles, Paris, Praça da Sé/Luz, São Paulo.
Diva Reale

Enquanto escrevia o trabalho para o 8º Congresso da ABRAMD, para nov/2021 fiz uma pesquisa rápida sobre a estação-forum Les Halles. Conheci em 1986 o trabalho de rua desenvolvido com usuários de drogas frequentadores deste local e suas imediações.

“Tive (…)a  oportunidade de acompanhar um turno das atividades de uma equipe de educadores de rua da Association L’Abbaye em Paris. O impacto produzido por este contato – o primeiro contato com um serviço voltado para usuários de drogas que não seguia as restrições próprias aos serviços de tratamento da dependência – levou a visitante a se interessar por esta modalidade de atenção aos usuários, obtendo, junto aos responsáveis do serviço,cópias dos relatórios anuais de avaliação que cobriram o período de 1979 (ano que o serviço inaugurou) a 1986. Em 1990, ao retornar para um segundo estágio em Marmottan, a estagiária obteve a informação de que este programa havia sido extinto.” (Reale, 1997, p. 59). O trabalho de rua de Abbaye já fora abordado no mestrado, compondo uma parte da seção dedicada aos trabalhos de rua na França:

“A abordagem centrada na pessoa do usuário de droga: um caso francês” (Reale, 1997, p.119).  “Na França, com o crescimento do consumo de drogas ilícitas ao longo das décadas de 70 e 80, progressivamente as equipes que desenvolviam trabalhos de rua com jovens marginalizados, foram se “especializando” em usuários de drogas (Girard, 1994). Em 1986, tivemos a oportunidade de ter contato em Paris com uma equipe de educadores de rua que desenvolvia um trabalho de rua, em locais centrais em Paris, de alta freqüência de usuários e dependentes de drogas (Bilan Annuel de L’Abbaye, 1979-1986). O trabalho era desenvolvido por uma instituição não governamental, sem fins lucrativos, cujo quadro funcional incluiu, ao longo de sua história, voluntários ex-toxicômanos ou não, técnicos (assistentes sociais e educadores) e estagiários. Nos seus primórdios, pós maio de 68, havia um espírito de experimentação, de aprendizagem de uma práxis “com a clientela” e não uma práxis “sobre a clientela”. O espírito que animava o trabalho de L ‘Abbaye era similar aquele que animava a “Free Clinic”, uma clínica aberta em São Francisco em 1967, onde o controle à saúde dos usuários seria exercido por seus pares, sobretudo através de atividades de animação de caráter “underground”, num “espaço estreito e colorido”, não “medicalizado” (Ephraïm, Isambart & Werebe, 1980, p. 61-62). Se inicialmente o caráter do trabalho era de “animação”, de organização “recreativa” junto aos jovens, progressivamente com a evolução do programa, ocorre uma profissionalização do trabalho, no duplo sentido: tanto a equipe se torna “mais profissionalizada” (tanto na sua composição, quanto na estruturação do trabalho) quanto as ações socioeducativas voltadas para os usuários de drogas, passam a ter um caráter progressivamente de reinserção profissional (Ephraïm, Isambart & Werebe, 1980). Esta trajetória de profissionalização do trabalho de rua da L’Abbaye coincide com o processo de profissionalização e institucionalização das estruturas que compõem o “sistème de soins français”, com a criação em 1980 da ANIT – Association Nacional Des Intervenants En Toxicomanies (Guégan, 1997, p. 9). O trabalho de rua da equipe da Abbaye se iniciou em Paris, em 1972, e acompanhou as alterações da clientela; acompanhou-a, literalmente, quando a seguiu em seus deslocamentos geográficos ao longo dos anos; também acompanhou a evolução do perfil de sua clientela ao adaptar-se às transformações nos padrões de usos e tipo de drogas consumidas, e às novas características socioeconômico e socioculturais da referida clientela; as adaptações implicavam em reajustes na oferta de serviços que passavam a ser requisitados pelos novos perfis da clientela (Bilan Annuel de L’Abbaye, 1979-1986). (…) A ação da equipe de rua e da equipe de retaguarda buscava promover a reinserção social dos jovens dependentes vinculados à equipe; esta reinserção era um processo lento em que se previa um percurso não linear, mas, ao contrário, sujeito a inúmeras “recaídas”, idas e vindas, aliás, percurso esse conhecido pelos serviços especializados no tratamento de dependentes de drogas. Este acompanhamento tinha um caráter individual e personalizado. Este programa foi desativado em 1990.” (Reale, 1997, p. 119-121)

A memória afetiva da leitura dos referidos relatórios do trabalho de rua da L’Abbaye inclui o registro de uma foto de um mapa feito à mão da estação subterrânea Les Halles onde eram indicados onde permaneciam os distintos grupos de usuários de drogas, separados conforme sua origem e pertencimento cultural distinto: arabs da Tunísia”, os africaines de Gana, Nigéria e assim por diante. O mapa desenhado indicando inclusive seus deslocamentos e forma de serem encontrados, impressionou a jovem médica pela primeira vez apresentada a abordagem que educadores de rua faziam no local quando tive a oportunidade de acompanhar os educadores em sua perambulação dirigida.

O ambiente com suas peculiaridades geográficas e arquitetônicas, traziam uma impressão de que guardava histórias que remontavam à magnitude parisiense de séculos. E muitas imagens de lá se inscreveram fortemente na memória, sempre acrescidos do encantamento pela cidade, pelo imaginário associado a Paris, que podia ser desvelado junto a história da vertente da tradição que acolhimento e se esforça por promover a inclusão. Esta matéria complementa numa aproximação rápida uma pequena parte da história deste local. Para conhecer as referências de onde retiramos as imagens sugiro uma visita aos links acrescidos aqui.

Les Halles histórico do quartier, desde século XII até o presente, torna-se por alguns séculos um mercado atacadista, até se tornar uma região fervilhante com a construção da maior estação de metrô articulada com sistema ferroviário RER, religando toda região metropolitana de Paris e seus arredores.

Por Truschet and Hoyau ; Mbzt - File:Plan de Paris vers 1550 color.jpg, CC BY-SA 4.0, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=34131466
Por Truschet and Hoyau ; Mbzt – File:Plan de Paris vers 1550 color.jpg, CC BY-SA 4.0, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=34131466
Le marché des Halles de Paris avant son transfert vers Rungis, au début des années 70. On distingue à l’arrière plan l’église Saint Eustache. Photo d’André Gouteux. https://histoire-image.org/fr/etudes/halles-paris-travers-histoire?i=749

Uma outra memória eclodiu enquanto pesquisava um pouco sobre a história deste quartier. A experiência de percorrer o circuito nas imediações da estação Les Halles, em 1986 reuniu-se uma segunda experiência prenhe de afetos por ocasião da comemoração do XXº aniversário do Centre Médical Marmottan, em Paris, 1991. Convidada por Olevenstein para compor a comitiva brasileira para participar do Simpósio, Toxicomanie et Condition humaine, fui hospedada num apê cedido por uma residente de psiquiatria de Marmottan. Ficava localizado numa pequena rua nas imediações do Forum Les Halles. Foi o que mais me aproximou de uma experiência de ser moradora de Paris, pois das outras vezes em que estivera estagiando por lá, me hospedava num quarto para estagiários dentro do hospital.

Estar um pequeno studio acrescentou um novo colorido a esta estadia que já carregava afetos de intensidade considerável. Corroborando a presença de me imaginar fazendo parte do cotidiano como moradora da cidade encontrei alguma brecha que me permitiu o deleite de uma cinéfila: assistir a uma estreia, num cinema deste shopping Les Halles, do filme Jusq’au bout du monde, de Wim Wenders.

https://www.adorocinema.com/filmes/filme-83536/trailer-19538202/

Bibliografia

BILAN ANNUEL DE L’ABBAYE: 8 relatórios de avaliação anual do programa de trabalho de rua (1979-1986) EPHRAIM, A.; ISAMBART, M.; WEREBE, S. L’Abbaye. Drogue et Société, n. 47-48, p. 61-63, Paris, 1980. GIRARD, V. ”Le travail de rue”, une approche particulière de la prévention. La Revue Agora, n. 31, p. 111-113, 1994. REALE, D. O caminho da redução de danos associados ao uso de drogas: do estigma à solidariedade. São Paulo, 216p. Dissertação (Mestrado em Medicina Preventiva), Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo, 1997.

https://www.obaratonodiva.com.br/teses

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