Decameron e a peste negra
Gozo do privilégio de ser amiga de Doris Cavallari, doutora pela USP, professora aposentada da USP, onde ela ainda ministra aulas e orienta teses na pós-graduação de língua e cultura italianas. Pois ela agraciou um círculo de próximos com um curso sobre Decameron, e para isso nos reunimos semanalmente para ouvir suas deliciosas aulas online.
Descobri a extensão da importância de Decameron de Boccaccio. O ponto principal foi sua escolha de escrever e publicar este livro em italiano vulgar, e não em latim como era praxe nas esferas cultas. Assim fazendo inaugurou não apenas o uso do italiano por escrito, como instituiu as bases da novela para a própria civilização ocidental… (espero que tenha apreendido corretamente, mas lembrem-se este material guarda o caráter de work in progress, estou partilhando com vocês os bastidores de meu processo de aprendizado-ensino; aos rigorosos, recomendo complementar estas informações extra-clínica com suas próprias pesquisas). Posto isto, observei que a obra estabelece um diálogo com nossa realidade, e vocês verão em seguida como. Deixemos que Boccaccio e seu comentador nos guiem nesta descoberta.
Estamos no ano de 1348 a 1353
“Boccaccio classifica com método as principais formas de conduta que se estabelecem na crise (peste negra):
1. alguns escolhiam a luxúria desenfreada, entregando-se sem reservas à bebida e aos prazeres elementares;
2. outros se recolhiam em grupos de oração, com práticas igualmente extremadas de autopunição;
3. muitos ainda ficavam entre estes extremos. Outros, como os narradores da obra, rompem os vínculos com este mundo já perdido.”
(Excertos editados de: Berriel, C. Introdução. In: Boccaccio, G. Decameron. Tradução Ivone C. Benedetti. São Paulo, L&PM Editores, 2013. p. 1-13.)
“Afirmo, portanto, que tínhamos atingido já o ano bem farto da Encarnação do Filho de Deus, de 1348, quando, na mui excelsa cidade de Florença, cuja beleza supera a de qualquer outra da Itália, sobreveio a mortífera pestilência. Por iniciativa dos corpos superiores, ou em razão de nossas iniquidades, a peste, atirada sobre os homens por justa cólera divina e para nossa exemplificação, tivera início nas regiões orientais, há alguns anos. Tal praga ceifara, naquelas plagas, uma enorme quantidade de pessoas vivas. Incansável, fora de um lugar para outro; e estendera-se, de forma miserável, para o Ocidente.
1. Pessoas havia que julgavam que o viver com moderação e o evitar qualquer superfluidade muito ajudavam para se resistir ao mal. Formando o seu grupo exclusivista, tais pessoas viviam longe das demais. Recolhiam-se e trancavam-se em casas onde nenhum doente estivera. Não procuravam viver melhor. Moderadamente faziam uso de alimentos simples, assim como de vinhos muito bons. Fugiam a qualquer ato de luxúria. Não ficavam a palestrar com ninguém, nem queriam ouvir falar de nenhum caso de morte, ou de doença, daqueles que estavam do lado de fora da casa que habitavam. Passavam as horas entretidos com a música e com os prazeres que pudessem ter.
2. Outras pessoas, levadas a uma opinião diversa desta, declaravam, que, para tão imenso mal, eram remédios eficazes o beber abundantemente, o gozar com intensidade, o ir cantando de uma parte a outra, o divertir-se de todas as maneiras, o satisfazer o apetite fosse de que coisa fosse, e o rir e troçar do que acontecesse, ou pudesse suceder. Como diziam, assim procediam, do modo como lhes fosse possível, dia e noite. Iam ora a uma tasca, ora a outra; bebiam imoderadamente e sem modos. E com mais desbragamento agiam na casa alheia, obrigando os donos a escutar o que lhes desse na telha de dizer. E podiam agir assim sem grandes preocupações, porque cada um — quase como se não houvesse mais viver — já deixara ao léu as suas coisas, assim como deixara ao deus-dará a própria pessoa. Por isso, a maior parte das casas ficou sendo de moradia comum; utilizava-se delas o estranho, que as adentrasse, como delas teria feito uso o próprio dono. E, com este proceder inteiramente bestial, as pessoas punham-se sempre longe dos doentes, tanto quanto possível.
3. Entre tanta aflição e tanta miséria de nossa cidade, a reverenda autoridade das leis, quer divinas, quer humanas, desmoronara e dissolvera-se. Ministros e executores das leis, tanto quanto os outros homens, todos estavam mortos, ou doentes, ou haviam perdido os seus familiares, e assim não podiam exercer nenhuma função. Em consequência de tal situação, permitia-se a todos fazer aquilo que melhor lhes aprouvesse.
4. Inúmeras pessoas preferiam o caminho do meio, entre os dois acima assinalados. Não evitavam os bons acepipes, como os primeiros, nem, igual aos segundos, entregavam-se à bebida e a outras formas de dissolução. Ao contrário, usavam todas as coisas, com suficiência e moderadamente, de acordo com o apetite. Não viviam fechados. Vagavam de um lugar a outro, levando, uns, flores nas mãos, ervas odoríferas outros, e outros, ainda, diferentes tipos de especiarias; levavam as ervas ao nariz, considerando excelente coisa o confortar o cérebro com o seu perfume. Era como se todo o ar estivesse tomado e infectado pelo odor nauseabundo dos corpos mortos, das doenças e dos remédios.”
(Excertos editados de: Proênio In: Boccaccio, G. Decameron, São Paulo, Ed. Abril, 1970.)
Finalizando este coktail pré-aula
Para pensar os efeitos da pandemia no uso de substâncias psicoativas é preciso levar em conta as singularidades das condições de cada um para enfrentá-la. Trouxemos este enquadre da peste negra do século XIV para lembrar que encontramos algumas semelhanças com as reações de nossos antepassados: as situações limites, extremas, acordam elementos que atravessam a cotidianidade em sua temporalidade ordinária. Somos lançados a tocar aos fundamentos de nossas vidas convidados a refletir sobre os sentidos da vida .
Demos esta palhinha do que iremos tratar na aula deste sábado, 4 de julho de 2020, do Barato no Divã: a Clínica em Contexto.
Aos nossos alunos desta turma do 1º sem/ 2020, até breve!